Duas semanas atrás meu marido e eu almoçamos com um casal amigos nossos. Eles nos contaram como a vida tinha ficado melhor após terem conseguido uma babá para a filha de dois anos de idade. Lembro que num determinado momento do almoço, o marido comentou meio brincadeira, meio verdade, que iria tudo embora mesmo a babá. Quando minha amiga me ligou . O motivo que me disse, era que a babá estava usufruindo de partes da casa e produtos da casa, que consideravam privados e até íntimos, sem autorização. Enquanto a ouvia pensava como esse tipo de situação iria se tornar cada vez mais comum. E quanto, todos, tínhamos a aprender sobre as novas relações sociais.
Devo esclarecer que considero o casal arejado, tranquilo, doce e amável. Passam longe de qualquer soberba elitista ou esnobismo social. Trabalhadores, conquistaram uma vida confortável, sem luxo, graças ao esforço e trabalho de ambos. Esclarecidos, tentam criar a filha sem condicionamento excessivo com o consumo. Portanto, não me parecem os clássicos conservadores, que estão buscando manter privilégios antigos e, porque não, obsoletos.
O que incomodou meus amigos foi o que eles consideraram abuso de confiança. E o que era esse abuso? Usar o banheiro da suíte, sendo que a casa tem mais 2 banheiros para uso das visitas e das funcionárias. Era comer produtos na geladeira que eles consideravam exclusivo do uso do casal e da criança – inclusive produtos que foram comprados para serem usados em jantares futuros já programados. Tudo isso, sem autorização. Era se queixar que a outra funcionária não fosse cozinhar porque a minha amiga tinha pedido para fazer uma limpeza mais caprichosa no lar, pensando já no jantar que ofereceria. Naquele dia, todos iriam comer comida congelada. Quem está certo? Quem está errado? Difícil responder em tempos de transição de valores. Não creio que haja um só lado certo ou errado. É a complexidade da realidade, com todos seus matizes, que vem nos atingindo e desnorteando. Como acredito que muitos de nós estejamos passando isso, trarei alguns pontos aqui para contribuir com a reflexão.
Se pensarmos sob a ótica de propriedade, é lógico que o que nos pertence ninguém deve pegar. Muito menos, se for sem perguntar antes. Se pensarmos sob a ótica do ambiente em que as pessoas são desenvolvidas, podemos entender que essa regra, embora seja compreendida por quase todos, não é rígida. Nas minhas pesquisas de campo já visitei comunidades. Sempre lamento que poucas pessoas do meu ambiente social visitem. Quando a gente visita lares de pessoas que moram em comunidades com a intenção de aprender, podemos reparar que a propriedade dos objetos fica mais elástica. As pessoas usam os objetos dos outros. Mesmo que não seja consentido. Mesmo que não tenham pedido por elas. Sabem que está errado e mesmo assim usam. Os donos podem ficar bravos, mas sabem que essa é a regra. A noção de individualidade e propriedade privada é diferente. Num ambiente onde há mais pessoas por metro quadrado, difícil separar o que é de cada um. Difícil manter o conceito de propriedade individualà risca. E não significa que estejam errados. E não significa que estejam certos.
Só esse conceito, de propriedade privada, já geraria uma longa e grande discussão. Imagina quando falamos de uma residência onde pessoas trabalham nela. O ambiente do lar traz sentido de intimidade que torna tudo mais difícil de equilibrar. Fora disso, carregamos ainda a herança da divisão social da Senzala e Casa Grandeque o grande Gilberto Freyre nos apresentou tão bem. Está no nosso inconsciente. Eu, pessoalmente, luto conscientemente contra essa herança. Pelo simples fato que para mim ela é corrosiva e ajuda a manter viva a desigualdade de valor entre os diferentes extratos sociais. E mesmo assim, muitas vezes me vejo agindo através desse legado.
Vamos supor que você não apoie a desigualdade social. Que a desigualdade social não seja necessária na tua autoestima para você se sentir melhor, vencedor ou qualquer um dos espaços do Poder Sobre (nome que dou para o poder que precisa da subjugação de alguém para se sentido). E, mesmo assim, está enfrentando a situação que meus amigos estão enfrentando. Minha amiga expressou um racional que eu já usei: “A casa é um lugar de trabalho. Eu não entro na sala da minha chefe e pego as coisas dela sem autorização”. Ela está certa. O que está errado é pensar que essa lógica se aplica a uma pessoa que vive numa outra realidade. Muito distante da sua. Por isso é tão importante sair das nossas bolhas confortáveis.
Outro dia conheci a Preta-rara, uma ex-empregada doméstica que é escritora, rapper, historiadora. Uma mulher especial com uma história de lutas e conquistas que dá emoção e orgulho só de ouvir. Ouvi-la foi reconhecer em mim atitudes que até alguns anos atrás era capaz de realizar sem me dar conta. Comportamento oriundo de uma herança podre que faz parte da minha história e da minha geração. Gosto de ler o que ela escreve. Aprendo. Me ajuda a compreender mesmo que nem sempre concorde com os seus pontos de vista. Agora ela lançou o livro “Eu, empregada doméstica”. Está na pilha de livros que serão lidos.
Uma pessoa que vem provavelmente, de uma história familiar que sofreu com o abuso de Poder Sobre. Do poder social que os colocava – e coloca – sempre na periferia da sociedade. Que vê hoje a oportunidade de se posicionar, num lugar social menos menosprezado, irá fazê-lo muitas vezes de forma agressiva. Quem foi abusado, de alguma forma, carrega em si o exagero da busca do direito. É neste momento, que acredito que estamos. Foi dada voz a uma parte significativa da sociedade que herdou anos de menosprezo social. Que sofreu, e ainda sofre, com a desigualdade social. Graças a muito esforço, que vem sendo feito há séculos, e que tem ganhado força para se exteriorizar consistentemente nas últimas décadas, pessoas movidas pela raiva que só a injustiça é capaz de promover, vem demarcar novo território social.
O posicionamento de meus amigos está correto. É legal, mas talvez não seja moral. A nova moralidade social está em construção. E todos temos que aprender a lidar com esses novos parâmetros. Eu pessoalmente, tenho vivido isso, especialmente nos últimos anos. Me perguntado o que realmente me incomoda? O que eu gostaria que seja exclusivo da minha família? E essa exclusividade é correta moralmente? É difícil decidir. Por isso, meu caminho tem sido o diálogo. Venho conversando bastante com minha funcionária. Colocando meus pontos de vista. Ela coloca os dela. Com isso vou decidindo. Tenho explicado cada decisão. Perguntado quão confortável ela fica. E assim, juntas, estamos criando um novo tipo de relacionamento profissional no lar.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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