Primeiramente, para se adaptar ao ninho vazio – ocasião em que os filhos saem da casa dos pais para viver suas próprias vidas – os casais precisam gostar do vazio e da companhia um do outro. Os filhos preenchem e ocupam o dia a dia. Viram tema de conversa. Motivo de diálogo. Quando eles saem de casa, por maior que seja o elo com eles, cria-se uma distância. Surgirão dias em que o comentário não gira mais em torno deles. É nesse momento que o casal volta a olhar um para o outro e reinicia uma parceria amorosa. Ou não.
Considero que, nas relações amorosas, existem alguns pontos cruciais que chamo de “pontos-risco de relacionamento”. São momentos de virada. De mudanças no fluxo da relação. Momentos no qual o sistema em que a relação está organizada se vê obrigado a mudar. Essa reorganização de sistema, que envolve combinados, regras, valores pessoais e formas como o fluxo da vida a dois segue, exige de cada um dos envolvidos tomar consciência do que quer para o futuro.
Nos pontos-risco de relacionamentos, precisamos parar e repactuar a relação. Para isso, é necessário usar a racionalidade no amor – ponto que tenho trazido bastante nos meus textos. Muitas pessoas têm uma visão exclusivamente romântica dos relacionamentos amorosos. O amor a dois pode ou não ser romântico. E, não sendo, não significa que é menos amor. O romantismo é uma forma de viver e transmitir o amor. Não é a única. Nem a melhor. Fomos criados, no Ocidente, com a idealização do amor romântico. Colocamos a régua lá em cima. A realidade, a vida como ela é, dificilmente atingirá nossas expectativas românticas. Não é à toa que nos frustramos tanto no amor – e, por que não, na vida.
Para viver uma relação saudável e prazerosa, precisamos de racionalidade. A relação a dois nada mais é do que um contrato que envolve sentimentos. Num bom contrato, ambos precisam sentir que estão ganhando o suficiente, e cedendo até o ponto que não lhes agrida. Ganhar e ceder. É assim que as boas relações se estabelecem. É um sistema de troca. Quanto mais justo, melhor o ethos (espírito) da relação envolvida.
A mudança trazida pelos pontos-risco de relacionamentos nos obriga a olhar para nós mesmos, para o nosso par e para a terceira pessoa, que é o relacionamento que criamos a dois. Vamos lembrar sempre que, nesse caso, são três entidades: eu, o outro e nós dois. Enquanto os filhos moram junto, esses detalhes muitas vezes passam despercebidos. Fica tudo tão entrelaçado que parece uma coisa só. Só que na realidade é um sistema. Nutrido por todos.
É no vazio que a ausência dos filhos oferece que podemos entender para que lado fomos caminhando como pessoas e como casal. Se nossos interesses individuais mudaram ou não, desde o início da relação. É natural mudar. Crescer e evoluir envolvem mudança. A dificuldade recai quando, nessas mudanças, vamos nos afastando dos interesses comuns do casal. Mais usual do que a maioria pensa, caminhar em direções diferentes não deveria ser uma surpresa, e sim algo visto como parte do processo de amadurecimento.
A racionalidade tira o peso da idealização. Se mudamos de rumo e o outro deseja seguir outra trilha, é hora de negociar. Ganhar e ceder, lembra? Cobrar porque o outro mudou de opinião ou de desejo de vida, é cobrar o fato de que o outro viveu e evoluiu. Talvez o questionamento seja: por que eu não mudei? Como escrevi no meu Instagram: “só muda quem está vivo”. Uma das fantásticas frases que ouvi na peça Arthur e Merlin, Um Sonho de Liberdade.
A vida é sábia. O vazio é um momento único e rico para nos questionarmos. O que eu quero para o futuro? Ainda queremos as mesmas coisas? Queremos seguir juntos? É no vazio que podemos ouvir melhor nossa voz interior. Não devemos ter medo dela. É nossa maior aliada. Até porque andar a dois – convencidos de que é a melhor alternativa – torna o caminho mais leve e fácil. Andar separados – convencidos de que fizemos a melhor trilha possível até o momento, só que queremos coisas distintas para o futuro e seria muito difícil continuar juntos – pode diminuir a dor que a separação costuma trazer. Nenhuma separação é fácil. Continuar juntos tampouco o é. Só que ambos podem ser simples quando organizamos, graças à racionalidade, nossos desejos e nossos sentimentos.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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