Copiei o título do meu texto de um filme de 1985 que me marcou bastante. Copiei porque considero que estejamos vivendo mundialmente o início de um novo ciclo. Em janeiro deste ano, enquanto viajava pela Índia, fui refletindo sobre como um país tão autêntico e singular a ponto de ser extremamente característico, podia, ao mesmo tempo, apresentar tantos contrastes. Por um lado, tanta riqueza cultural e, por outro, tanta miséria. Tanta sabedoria e, ao mesmo tempo, tanta falta de infraestrutura. Tanta amorosidade, delicadeza e doçura e tanta agressividade contra as mulheres e crianças. Tanta tecnologia e, ao mesmo tempo, tanta precariedade. Lembro que, num dos textos que escrevi sobre minha experiência, disse que a Índia continha o mundo todo nela. Conhecer a Índia, de certa forma, é conhecer o mundo que criamos, só que sem disfarces. Sem periferias afastadas para que possamos fingir que elas não existem.
A minha experiência nessa terra maravilhosa aprofundou minha convicção de que devemos mudar – e com agilidade – o sistema de valores que construímos ao longo dos séculos. Um sistema criado por e para o patriarcado. Sistema que ainda domina a maior parte dos países e sociedades – isso quer dizer que ainda domina nossa visão individual de mundo. Um sistema que felizmente vem sofrendo, especialmente nestes últimos cem anos, ataques ferozes. Suas estruturas estão em parte derrubadas, avariadas ou comprometidas. Todos sabemos disso. Ao mesmo tempo, como um moribundo que se aferra à vida, consegue se manter em pé e continuar lutando por aquilo que não é mais possível.
Sou uma mulher de fé profunda. Acredito em Deus e na espiritualidade, independentemente da religião. Respeito todas. E estar na Índia é estar em contato com a fé o tempo inteiro. Foi lá que, ao acompanhar as notícias do mundo, tive um vislumbre que me encheu de confiança: as mudanças aconteceriam rápido. E, quando digo “rápido”, minha aposta era de que terminaríamos esta década, que estávamos iniciando, com a questão da equidade de gênero entre homens e mulheres quase resolvida. Resolvendo essa questão, que é o cerne da questão das desigualdades nas relações humanas, automaticamente avançaríamos em outros campos. Como uma teia, dentro do sistema, tudo está interligado. Avançaríamos na questão da desigualdade social, na questão ambiental e na questão do tipo de poder que necessita da subjugação do outro para se estabelecer – o Poder Sobre, do Movimento Humano O Poder Isonômico.
Desde a 4ª Conferência Mundial sobre as Mulheres e a adoção da Declaração e Plataforma de Ação de Pequim (1995), a luta pela equidade andou lenta e consistentemente. Esse movimento começou a tomar um volume de ações que é difícil não notar sua importância. Chegamos a 2020 e a economia do mundo representada em Davos mostra movimentos claros de que o tempo limite para a mudança nos valores que promovem a desigualdade chegou. Metas e ações são anunciadas e repercutem no mundo todo.
Em outro território, não tão distante assim da economia quanto possa parecer, a indústria da moda – com todo seu capital intelectual, emocional e financeiro envolvido – se posiciona a favor do antes criticado Manifesto AntiFashion, escrito por Li Edelkoort em 2015. Era janeiro quando todas as revistas Vogue do mundo, ao todo são 26, lançaram os novos valores e a missão que irão reger seus editoriais nesta década. Diversidade, sustentabilidade para preservar o planeta para as próximas gerações, responsabilidade e respeito são alguns dos valores escolhidos. Posicionamento que confirma o que Li, uma das mais poderosas profissionais em tendências de moda e design no mundo, alertava no seu famoso manifesto: a quebra do sistema da indústria fashion global tal qual foi construído.
Para que ninguém tenha dúvida do objetivo da Vogue, em fevereiro, a sua toda poderosa editora-chefe, Anna Wintour, é vista com seu casaco de pele sustentável. A indústria da moda entendeu o recado: além de tentar parecer cool, terá que correr atrás do período de negação e se adequar. Isso envolve a indústria da beleza, do consumo, dos ideais a serem vendidos. Podemos imaginar a influência dessas ações no consumo mundial de qualquer tipo de produto.
Devo confessar que fiquei feliz em acompanhar todos esses movimentos. Mesmo assim, considerava o fim desta década como o tempo médio para poder enxergar essas mudanças de formas mais tangíveis. Aí, chegou a Covid-19. Interessante como o sistema em que todos estamos inseridos – e que fica cada vez mais claro com uma doença mundial como essa – encontra maneiras de nos dizer que estamos colapsando e precisamos nos unir para evitar o pior. Queiramos ou não, será o caminho. E, após termos trilhado por esse, o mundo saíra diferente.
Pois bem, agora posso me juntar aos confiantes. Afinal, como disse anteriormente, sou uma mulher de fé: sairemos diferentes e melhores. Sempre haverá os que não aprendem com a vida – ainda existem pessoas dentre nós que promovem o trabalho escravo, quer o que mais? Mas eles são a minoria. Com o sistema de valores se modificando, a nossa moralidade se altera. Quando nossa moralidade se altera, não aceitamos mais coisas que no passado pareceriam normais. Essa mudança, meus estudos indicam, já aconteceu em vários pontos. A Covid-19 veio acelerar nosso ritmo. Que possamos honrar todos aqueles que morreram e ainda, infelizmente, morrerão pelo vírus, tornando essas mortes válidas para construir uma sociedade mais justa e equitativa.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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