Passei uns dias na praia, desconectada de notícias e das redes sociais; uma pequena pausa da hiperconectividade em que tenho estado nos últimos meses devido à pandemia da Covid-19. Ficar longe do que me conectava com o mundo fez que vivesse em outro ritmo. O ritmo das conversas sem intenção. Do acordar quando o desejo de caminhar vencia o desejo de cochilar. Do sonhar com a areia do mar e logo depois pisar nela com os pés descalços. Dos risos soltos, do sono relaxado e da leveza de se preocupar com coisas bobas. Dias oferecidos à minha alma, para ela se pacificar.
Podemos fugir dando asas à nossa necessidade de escapismo dos tempos difíceis e dar esse respiro, tão restaurador, mesmo sabendo que, ao voltar à vida normal, pouca coisa vai melhorar. E realmente não melhorou. Na estrada a caminho de São Paulo, a cada espasmo que o rádio cuspia na sua tentativa de sinal, a bruta realidade que tem tomado nossas vidas se fazia presente: uma menina de 10 anos grávida por estupro,e as pessoas preocupadas se ela devia ou não abortar; os números da covid-19 mantendo suas taxas mortais, o Pantanal ardendo e os índices de aprovação do presidente, que parece não se importar com nada disso, subindo. É isto aí: para boa parte dos que moram nesta terra abençoada por Deus, todos os Orixás e quantos outros deuses, reis e rainhas espirituais existirem, se entra dinheiro, o como não importa. E, claro, não me refiro somente às pessoas realmente necessitadas.
Por outro lado, conheço, ouço e leio sobre mais e mais pessoas que vêm repensando sua vida, seus valores, sua posição no mundo. Buscando um caminho mais sustentável. Sustentável emocionalmente, sustentável na noção do uso do tempo, dos recursos investidos, sustentável também no sentido de alimentar a alma para ela não adoecer. Para essas pessoas só existe um caminho: compreender que Ter menos nos leva à maior nutrição do nosso Ser. Com nosso Ser interno nutrido, a importância do externo diminui. Menos álcool, menos drogas lícitas e não lícitas, menos diversão exaustiva para se distrair – do quê mesmo?
Os ícones de poder externos, que tanto dão segurança e geram autoestima aos enfraquecidos emocionalmente, se tornam menos relevantes. No microcosmo desse grupo, os ícones de poder, caso eles sobrevivam, existem porque o conforto e o prazer não são pecados e fazem bem à alma. Coisas boas, feitas com materiais nobres, tendem a durar mais; assim a necessidade de consumo cai. Cada um, no seu microcosmo, entendeu que a ostentação, num país tão desigual socialmente, se não é pecado, no mínimo é moralmente duvidosa. Para esse grupo, a chave da moral que busca mais equidade e respeito pelo outro já mudou.
Há outros que conseguiram mudar a chave do Eu para o Nós. Quando essa chave muda, fica difícil ver o mundo como a terra do Eu. O caminho para a tão sonhada felicidade se abre pela estrada que prejudica menos o outro e se encaminha para a terra do amor incondicional. Aquela terra na qual quanto mais amor a gente dá, mais nosso coração fica preenchido por ele. Não é possível o prazer se isso traz sofrimento para o outro. É uma forma de ver a vida na qual pensar no outro é automático e indissociável.
Para essas pessoas a visão sistêmica da vida é a realidade. Compreendem que desigualdade social alta significa violência urbana acirrada. Entendem que o desmatamento da floresta diminui a vida dos animais e que, sem eles, se enfraquece a nossa barreira natural contra os vírus que não temos capacidade física de enfrentar. O nosso ecossistema deixa de ser uma palavra da moda e vira um valor associado à vida com saúde.
A distância entre a praia e a cidade de São Paulo é longa o suficiente para refletir e voltar a acalmar o coração. Afinal nosso estilo de vida é uma escolha. Olhar o mundo a partir de valores que escolhemos pacifica ou intranquiliza. Sim, há pessoas más que estão cada vez mais mostrando a sua cara sem pudor. O ambiente permite isso e eles o fazem sem pudor, confiantes que a impunidade vai vencer. Mas também há outros mundos nos quais esses seres não se criam. Mundos em que o amor é o caminho escolhido. Mundos onde a coragem permite se colocar contra, discutir, trazer à reflexão. Mundos onde o belo dos gestos e dos atos reina para contrabalançar as agruras da realidade.
Que bom voltar para casa.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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