Nestes tempos de isolamento devido à pandemia da covid-19, tenho observado as pessoas através da artificialidade das redes sociais e de ligações com vídeo, e o que tenho notado é que têm se acentuado comportamentos que, numa primeira análise, não considero normais. Essa primeira impressão me levou para dois caminhos de reflexão: o primeiro trata dos efeitos que a reclusão e o medo da morte e/ou da dificuldade financeira – seja esse medo justificado ou não – podem causar na mente humana. O segundo caminho foi me aprofundar no que eu entendia por normalidade e anormalidade, para poder confirmar se minha primeira impressão – de que as pessoas estão agindo de forma anormal – fazia sentido. Foi nesse momento que entendi que o conceito de normalidade que eu utilizava coloquialmente talvez estivesse equivocado.
Ao descobrir que a normalidade psicológica é um conceito dinâmico,elástico e dependente de diversas variáveis, decidi criar o “meu” conceito de normalidade nessa minha elucubração sobre o tema. O que seria uma pessoa normal para mim? Para responder a essa questão, comecei por trazer à lembrança as milhares – sem exagero – de pessoas que já entrevistei em mais de trinta anos de profissão e tentei estabelecer um parâmetro do que seria uma pessoa normal. Durante esse processo compreendi que quando pensamos em normalidade, logo de cara fazemos uma associação com um ser que praticamente não existe. Essa pessoa “normal” é uma abstração que nos ajuda a parametrizar a nossa anormalidade ou o que faltaria para atingir a normalidade. No meu caso, a ideia de pessoa “normal” que usava como parâmetro evocava a imagem de uma pessoa que conseguia uma estabilidade emocional a partir da compreensão de si próprio – o autoconhecimento – e da vida. É claro que essa normalidade se ajustava à idade cronológica e suas naturais fases da vida. Também é claro que esse ser é quase inexistente.
Me dei conta de que ao longo da minha carreira como pesquisadora tenho encontrado pessoas normais, sim porém, distantes do meu ideário de normalidade. Pessoas que, na sua maioria, apresentavam um autoconhecimento mediano ou baixo, o que lhes inibia uma ampla compreensão de seus sentimentos e de sua forma de funcionamento na vida prática. Eram pessoas que, como diria Jung, faziam de seu inconsciente seu destino.
Encontrei também pessoas “normais” que são tomadas pelo mental – nomenclatura que criei para definir uma pessoa que não consegue silenciar a mente. Alguém, por exemplo, que não para de falar, emendando uma frase com a outra, um assunto com o outro. Pelo volume de fala em pouco tempo, dá para notar que nem ela própria consegue se ouvir e, muito menos, ouvir o outro.
Também encontrei pessoas cheias de manias, esquisitices, vícios e comportamentos autodestrutivos – como manter uma relacionamento abusivo, por exemplo. Mesmo assim, todas essas pessoas, salvo exceções, levam uma vida “normal”. Costumam trabalhar e ter um sucesso razoável. São casadas ou já tiveram amores profundos. A maioria tem filhos e os cria com amor e dedicação. Enfim, gente como a gente, como nosso vizinho ao lado, como nosso chefe, nosso cliente, nosso funcionário ou, quem sabe, como nós mesmos.
Pensando na dinâmica social que classifica como normais pessoas que estão longe de um ideário de normalidade, fica mais fácil compreender como muitos, no meio de uma pandemia que matou, até o momento, mais de onze mil pessoas no Brasil, mesmo tendo problemas de saúde que os colocariam no grupo de risco, reúnem amigos em casa porque não aguentam sua própria companhia – ou a companhia de seu/sua companheira e filhos. Seriam essas pessoas anormais?
Algumas pessoas me escrevem sobre aqueles que elas consideram anormais porque continuam saindo às ruas, pondo os outros em risco, só porque têm boa boa saúde. Ou mencionam os “anormais” que agridem os profissionais de saúde – como aconteceu numa manifestação em Brasília –, sendo que esses profissionais estão, sem dúvida, colocando em risco suas vidas para salvar os outros. Para essas pessoas que me escrevem e comentam sobre essa anormalidade na nossa sociedade, eu respondo: primeiro devemos distinguir caráter do conceito de anormalidade.
Houve e sempre haverá pessoas de mau caráter. Dependendo do ambiente social promovido pelos valores da época, essas pessoas de caráter duvidoso ficam mais ou menos reprimidas. O pessoal que agrediu os profissionais de saúde em Brasília eu classificaria nesse grupo. Os outros são pessoas normais que possuem desde muito até quase nenhum controle sobre sua mente e domínio sobre seus atos. Assim, num momento de tensão em que são deslocadas do seu lugar de segurança emocional, atuam com certo grau de irracionalidade. Seriam essas pessoas anormais? Se forem, então teremos chegado à conclusão de que a nossa sociedade é composta por boa parte delas.
Quando alguém perto de nós – às vezes na nossa própria casa – estiver agindo de forma menos racional e lógica, talvez seja um sinal de que chegou a hora de olhar para a saúde mental da nossa sociedade com amor e seriedade. Talvez seja a hora de compreender o que pode nos trazer estabilidade emocional em momentos de crise e de bonança. Porque se de uma coisa estou cada vez mais certa é de que essa pandemia pode ser a primeira de várias.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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