A festa pagã mais divertida e necessária do planeta tem diversas facetas como todo ser humano tem. Uma delas me fascina há muitos anos: o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Lembro que desde que cheguei a esta terra do samba varava as noites assistindo ao vivo pela TV, hipnotizada com a criatividade e a alegria dos integrantes. Mesmo depois que entendi que há regras, jurados e é um concurso, foi somente quando pisei na Sapucaí pela primeira vez, que compreendi a grandiosidade da festa e o profissionalismo que há por trás. Foi ai que compreendi que o realizar do brasileiro costuma ser bagunçadamente alegre.
Quase duas décadas depois, quando comecei a frequentar a “avenida” como é chamada a Sapucaí, aprendi a conhecer e admirar cada vez mais cada escola de samba que desfila. Reconhecer nos seus integrantes a dedicação, a fé e a força que possuem para lutar pelo título que as vezes nunca chega. É a noite que gari virá rei. Puxador de carro é passista na avenida. São eles que brilham e fazem o desfile acontecer. Cantando, suando, rebolando e atentos aos pequenos detalhes para não perder pontos perante os jurados. Quem disse que atenção tem que ser silenciosa e sisuda nunca foi para Sapucaí.
Tem gente que vai a avenida para ver e ser visto. Gente que vai pensando que irá passar a noite dos seus sonhos na terra de Calígula, e tem gente que vai para se deslumbrar com a grandiosidade dos carros alegóricos, sambar e cantar até o sol raiar. A avenida é diversa e heterogênea. Atende a todos, menos aos chatos e cansados.
Para quem não deseja ou pode ir à Sapucaí, é maravilhoso o tempo de Carnaval no Rio de Janeiro, para mim a cidade que melhor caracteriza o espírito de fantasia que é umas das caras do carnaval no Brasil. Fora dos circuitos dos principais blocos você pode ver na rua bloquinhos de crianças e idosos dando volta em torno da quadra dançando marchinhas antigas, pessoas na padaria com fantasia ou um adereço na cabeça que lembra que a alma está disposta a brincar. Crianças e pais conversando coisas do cotidiano vestidos de Super Heróis, Flintstones ou Bela e a Fera. São com eles que você cruza quando vai à praia, ao posto, à farmácia. Há os bêbados, há as prostitutas, há os ladrões como sempre houve mas a alma e os olhos seguem aquilo que for importante para você. Como sempre é você que faz teu carnaval.
Em tempos de carnaval adoro ouvir as histórias de infância que meu marido costuma trazer à lembrança nesta época do ano. Criado por uma família alegre e que tem a música, especialmente o samba, como canal de relacionamento, foi a avó materna que o levava aos bailinhos de carnaval fantasiado e cantando todas as marchinhas que ao longo do ano lhe ensinava. Com uma infância lúdica, alegre e musical é difícil não ter uma alma doce. Nessa faceta do carnaval há um certa inocência que a fantasia trás e faz a a alma sonhar que tudo é possível, que a vida é boa, alegre e feliz.
A fantasia, a alegria, a música, a liberdade de se soltar para brincar são o melhor do tempo do carnaval. Aprendi que o carnaval é um período de liberar o nosso lado cerceado pela moral regente. É o momento de brincar, de se divertir, de rir de si próprio, de deixar o controle de lado. É o momento de honrar o lado sombra de cada um de nós. Há sempre uma cultura, uma crença religiosa que tenta anular nosso lado mais telúrico como se ele não fizesse parte de nós. Como se voltássemos ao período medieval em que ser angelical era uma pretensão promovida pela Igreja e incentivada pela sociedade. Óbvio que deu tudo errado. Negar o nosso lado sombra é permitir que ele continue agindo no inconsciente. Conhecê-lo é uma forma de não sermos controlados por ele. O carnaval pode também ser um dos meios mais divertidos e alegres para realizar essa viagem para dentro de nós. Não importa qual faceta do carnaval você desfruta e qual loucura você se permite, o mais importante, é você se permitir brincar e se soltar.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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