Chego na recepção de um cliente. Arquitetura que impressiona respirando tecnologia, construção baseada nos mais modernos conceitos ecológicos, uma empresa que busca evoluir e manter-se conectada com os conceitos contemporâneos de gestão. Dia gelado. São Paulo num de seus dias mais frios dos últimos anos. Um vento quase polar. Sensação térmica de quem não está acostumado a 8 graus do lado de fora, entrando por duas portas escancaradamente abertas, que formam entre si, um corredor de ar gelado que atravessa casacos e cachecóis existentes naquele amplo espaço.
Como todo prédio moderno, a recepção tem um pé direito altíssimo, o que deixa a sensação térmica pior ainda. Eu com meu casaco grosso, mesmo bem protegida, sinto aquele ar batendo na minha cabeça e gelando minhas orelhas. Entrego meu documento para uma das diversas recepcionistas que estão ali sentadas tentando manter um pouco de calor dentro do corpo. Elas assim como os seguranças que discretamente ficam se mexendo numa tentativa de que o movimento aqueça o corpo, tentam suportar com um sorriso o frio que congela.
O cliente não atende o ramal e eu tenho que continuar nesse lugar. Depois de alguns minutos não aguentando mais aquele vento gelado na minha cabeça pergunto: vocês ficam com essas portas abertas o tempo inteiro? Duas recepcionistas me olham e a que me atendeu responde: sim. O segurança discretamente olha para mim. Mesmo neste frio?, insisto. A outra confirma com a cabeça. O cliente responde e sou liberada para subir. Antes de pegar meu crachá digo para elas, consciente que o segurança está bem atento a minhas palavras: olha eu vou avisar lá em cima que não faz nenhum sentido manter essas portas abertas. Em qualquer lugar do mundo desenvolvido, que faz frio, as portas ficam fechadas. Mais recepcionistas prestam atenção a minha frase e a que me atendeu me diz com um olhar atento: muito obrigada. Passo pela catraca e o segurança que tinha ouvido a conversa dá um discreto sorriso para mim.
Dentro do elevador, daqueles inteligentes, lembro do moço que dias atrás estava praticamente congelado no espaço que algum arquiteto ou administrador do prédio lhe reservou para receber os carros e dar o ticket do estacionamento aos visitantes. Lembro da cara de irritação de tanto frio que ele estava passando. Como ser gentil numa hora dessas? Entro no andar da reunião que graças à calefação me obriga a tirar o casaco e o cachecol. A reunião começa.
O que faz passarmos por seres humanos como nós e não percebê-los? Pessoas que provavelmente conhecemos seus nomes, que devemos ver quase todos os dias e brincamos com aquelas frases clássicas da troca rápida de cumprimentos e, mesmo assim, não conseguimos nos conectar com elas a ponto de pensar no seu bem-estar? O que faz que no dia a dia tenhamos criado uma forma de lidar com o mundo que nos leva ao sentido oposto da empatia?
Deve haver razão para aquele rapaz do estacionamento trabalhar num lugar com tanto vento – gelado – canalizado e as portas da recepção dessa grande empresa estarem abertas mesmo que fotos de geadas povoem os timelines de todos. Sempre há. Mas acredito que nenhuma regra não possa ser quebrada quando um ser humano, por cumpri-la, põe em risco sua saúde ou a dos outros. Especialmente, como neste caso, provavelmente, o dress code não lhe permite agasalhar-se melhor. Devemos todos lembrar que fome e frio são duas das piores coisas que um ser humano pode passar. Nenhuma pressa, nenhum problema a ser resolvido, deveria distanciar quem tem o poder de evitá-los, de quem lhe resta a resignação de esperar um dia ser percebido.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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