Acabei de voltar de mais uma viagem ao meu país, Peru. Voltei aos Andes peruanos, dessa vez, com a família: meu marido, meus dois enteados e o companheiro de um deles. Resolvemos focar a região de Cusco e Machu Picchu, por ser a que melhor sintetiza a força do Império dos Quéchuas hoje conhecidos como incas. Um erro de denominação que carregamos até hoje – Inca era só o rei, como o Faraó era para os egípcios – e que será difícil de alterar dada a abrangência mundial que esse nome obteve.
Foi a primeira visita dos meninos ao meu país e, embora eu estivesse naquela região pela quinta vez, viajar com eles me ajudou a redescobrir e ampliar a visão que tenho dessa cultura, berço da minha identidade. O olhar de quem não conhece costuma nos fazer enxergar pontos ocultos ou ressaltar aspectos que o olho acostumado tende a descartar. Para quem gosta de ampliar horizontes, nada melhor do que o outro. Especialmente se esse outro difere, nem que seja em alguns aspectos, de nós.
Durante a viagem, tive algumas impressões que irei compartilhar com vocês nas próximas semanas. A primeira delas é positiva: constatei que, pelo menos na região de Cusco, existe claramente um esforço em resgatar o valor da origem do Peru, seus índios. E aqui não me refiro somente aos incas, mas também a todas as culturas pré-incaicas que criaram a base tecnológica que permitiu aos incas desenvolver seu império: tecnologia agrícola, hidráulica, medicinal e de construção. Assim como a tecnologia aplicada à arte de tecelagem, à criação de suas cerâmicas, à manufatura de suas ferramentas. Sem esquecer seu vasto conhecimento sobre o meio ambiente e astronomia. Forças naturais que souberam usar a seu favor.
Até pouco tempo atrás, o peruano pouco reconhecia a inteligência ancestral de seus povos indígenas – e acredito que muitos ainda não a valorizem. Como todo país colonizado, olhava para fora de si, para se mirar num exemplo que dificilmente iria alcançar pelo simples fato de não ser legítimo. Essa ilegitimidade identitária geraria em meu país grandes feridas. Feridas que se mostram na baixa autoestima, submissão, subserviência, assim como na vergonha do traço indígena. Traço que a grande maioria do povo carrega. Traço negado por todo mestiço com certo dinheiro na busca de se assemelhar ao homem branco. Tem coisa mais falsa? Tem coisa mais triste do que negar a sua origem, na busca de ascensão social?
Hoje o peruano da região de Cusco e dos arredores, graças ao aumento de turismo qualificado, começa a entender a força da sua origem. Começa a compreender que ser branco é tão só uma característica como qualquer outra. Com pontos positivos e admiráveis. Com pontos negativos e reprováveis. E que, pelo menos no nosso país, cometeu diversos crimes que aos olhos da moralidade atual são absolutamente deploráveis.
A cada jantar ou almoço, entanto nos deliciávamos com os sabores da comida peruana – que é, sem dúvida, um dos grandes propulsores do turismo atual – minha família iniciava uma rica e interessante discussão sobre como víamos a construção da identidade peruana. Cada um contribuía com sua visão de mundo e suas percepções.
Entender como renasce o orgulho legítimo de um povo, ajuda, especialmente a mim, neste meu labor de trazer mais consciência, a identificar a importância do reconhecimento das narrativas que constroem nossa noção de realidade. Reconhecer como a nossa história nos contada, história comumente modificada de acordo com os interesses do poder do momento. Entender o contexto histórico e conseguir, aos olhos atuais, renovar essa narrativa, incluindo novas informações, novas descobertas. Reconhecer o perigo de se fixar numa só fonte de informação e a importância de buscar fontes diversas. De conhecer, observar, absorver e refletir sobre as raízes de nossa origem.
No nosso último dia em Cusco, abençoados pela dinâmica da cidade em ebulição graças à busca de legitimar sua identidade cultural, assistimos a uma apresentação de um jardim de infância. Crianças de quatro e cinco anos de idade, vestidas a caráter com suas vibrantes e coloridas roupas típicas indígenas, caminharam até a praça do Koricancha, o Templo do Sol. Lá, na frente de milhares de pessoas e com a presença do canal de televisão local, representaram a festa do Inti Raymi – a principal festa ancestral que se celebra em Cusco todo mês de junho, durante o solstício de inverno.
Ao ouvir a diretora da escola, a emoção tomou conta de nós. Eles começaram a organizar essa apresentação há três anos. Tornou-se uma data especial para o jardim de infância e, agora, para a cidade. As crianças aprendem, cada símbolo e personagem da festa. Numa narrativa amorosa sobre o conhecimento indígena, elas aprendem desde cedo a valorizar sua origem. Sua terra. Suas lendas. Sua história.
“Queremos que as crianças se envolvam. Que sintam no seu coração a sua própria história e assim construam sua identidade cultural”, disse em determinado momento a diretora, seguida por um pronunciamento em quéchua, língua original do povo da região, feito por um dos professores. Todos vestidos a caráter. Construir a autoestima de dentro para fora. A partir do reconhecimento da grandiosidade de sua origem. Como li num cartaz na Plaza de Armas de Cusco: “No se valora ni se ama lo que no se conoce”.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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