Hoje, meu caro e cara leitora, talvez meu texto não te agrade. Escrevi pensando em você que é um dos dez mil leitores mensais com quem tenho o prazer de partilhar reflexões. Considerando o estilo de vida e pensamento que provavelmente compartilhamos por estarmos inseridos na mesma bolha social. Talvez você não queira ler até o fim. Mesmo assim, vou seguir o meu coração e escrever guiada por ele. Minhas palavras falam sobre algo que vem me incomodando profundamente: o silêncio e apatia dos bonzinhos e corretos. Vivemos num país pleno de injustiças sociais. A injustiça social existe, provavelmente, desde tempos remotos e não é produto exclusivo da nossa sociedade atual. O que é produto de nossa sociedade atual é sua manutenção e seu aprofundamento
Muitos comentam comigo que poucas pessoas conseguem fazer as correlações necessárias para entender como suas atitudes contribuem ou não para que essas injustiças sociais se mantenham. Concordo. A visão sistêmica das forças sociais que criam o todo, infelizmente, ainda é para poucos. Só não concordo que esta seja a justificativa principal. Creio que há algo a mais. Mesmo sem saber os mecanismos que geram a injustiça social, poderiam existir a emoção e o sentimento ao ver homens, mulheres, crianças, idosos em estado de total pobreza, miséria. Segregados, vivendo, muitas vezes, sem a dignidade necessária que lhes permita o mínimo de autoestima para sair do lugar onde estão. Observá-los poderia gerar sentimentos de compaixão e empatia. De desejo de mudança. De ação.
O que vejo ao meu redor é uma narrativa que culpabiliza o segregado. Ela vem ao encontro da moral existente na minha bolha social: todo pobre e segregado está ali porque quer. Porque é preguiçoso, criminoso ou burro. Do lado de dentro da bolha: somos todos bonzinhos, pagamos todas as contas e impostos, não roubamos, não matamos, trabalhamos arduamente e lutamos diariamente pelo direito de ocupar o nosso lugar social. Ou seja, fazemos a nossa parte e o que interessa é ser feliz. Olhar para nossa própria felicidade, às vezes ampliando-a para as pessoas mais próximas.
É muito mais fácil – até porque traz alívio para nossa consciência – acreditar nas histórias de roubo, de desvio, de aproveitamento dos benefícios sociais governamentais do que acreditar no abuso de poder, no assédio moral e sexual, no medo que as pessoas mais pobres enfrentam todo dia. A luta difícil e quase sempre inútil de tentar sair do lugar em que estão. A segregação, por exemplo, que todo jovem negro vive a cada passo que dá em direção à busca de seu espaço social. A dificuldade de estudar vindo de um ambiente de analfabetos. Precisa de muita força emocional para enfrentar um mundo que lhe é hostil, somente por ser quem é e vir de onde vem.
Por menos – mas menos mesmo – nossos filhos ficam deprimidos e logo tascamos drogas lícitas neles para que possam enfrentar a vida adulta. Oferecemos viagens, pagamos cursos no exterior, psicólogos e toda sorte de artifícios que fazem o kit salva-vidas social que criamos. E continuam da mesma forma: fracos e desorientados. Para os nossos, há compaixão – afinal, a vida é dura. Para os outros, há dureza – afinal, são preguiçosos. Como podemos estar passivos a esse modelo mental que se torna o modo como levamos a sociedade? Não vemos que tudo faz parte do mesmo sistema? Não tem como ser feliz com a maioria do mundo sofrendo.
A felicidade, conforme tanto se explora hoje em dia, está sendo entendida como uma forma de viver a vida, e não um destino. Como consequência da serenidade que se obtém ao nos compreender, ao compreender o mundo, assim como as limitações e possibilidades reais de tudo isso. É o encontro com o equilíbrio, dizem os budistas. E seguir o seu propósito, dizem os pensadores do desenvolvimento humano. Para mim, é dar sentido à vida. É ir além do ter e do ser. Porque o ser ainda está no Eu. É entregar ao mundo o nosso dom e nosso poder de realizar. E fazer parte ativa da sociedade em que estamos vivendo.
Considero importante entender que deixar longe de nosso campo de visão – na periferia, por exemplo – o que não nos agrada, não significa que não exista. Podemos até andar pelas ruas bem policiadas da nossa bolha imaginando que estamos no Primeiro Mundo. Talvez na busca de nos afirmar como seres desse Mundo. Lamento informar que não só não estamos nele, como seria impossível sermos parte dele. Mesmo tendo casa por lá. Ser um cidadão do Primeiro Mundo passa, necessariamente, por lutar para erradicar a desigualdade social. Passa necessariamente por entender que cada um de nós é responsável, socialmente, pelo sistema que opera a sociedade.
Estamos em tal ponto de inflexão social que sermos bonzinhos e corretos não basta.
E aí você, que ficou comigo até esta parte do texto – e agradeço por isso –, o que me diz de tudo que escrevi?
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
19 Comments
Oi. Eu não apenas fiquei com vc até a última palavra mas li duas vezes e bem devagar. Corajoso e assertivo texto. Eu de fato tenho escutado com frequência a frase: “...eu faço a minha parte, pago meus impostos..” e, na última
Vez que escutei isso, não me aguentei e falei: você não acha que poderia fazer algo mais além de ter um contracheque descontado automaticamente ?. A pessoa me olhou como se eu a tivesse colocado em uma jaula e jogado a chave na fossa das ilhas Marianas. Minha conclusão: um exemplo vivo de delegação de algo que não se delega. Afinal, delegar a um contracheque é muito confortável! Boa noite.
Andrea te agradeço o comentário. Fico bem sabendo que meu texto ressoa em mais pessoas. Calar, independente do motivo e razão, é uma forma de consentir. Abraços.
Reflexão importante. Um chamado de urgência dos novos tempos!
Exatamente Gabi!
E qual seria a ação concreta que devemos fazer? Tenho participado de protestos, ido pra rua denunciar esta realidade reacionária que estamos vivendo, esse momento de morte.
Me questiono, converso com as pessoas, que como eu, sabem que não há paz sem justiça social. Mas não conseguimos encontrar uma maneira de as pessoas despertarem para a vida do ser humano, não só de sua família.
Em seu silêncio, apóiam o extermínio da população da periferia, a entrega de nossas riquezas, a destruição de nossa natureza, da nossa cultura.
Denise primeiramente peço desculpa pela demora em responder. Pensei que tivesse subido o texto que fiz. Pois é... estamos no mesmo barco. Eu tenho me envolvido mais a conversar com pessoas que sei que se interessam porém vão utilizando sua vida com outras prioridades. Trazido o tema constantemente na mesa do jantar. Pode parecer pouco, porém, saber que gera reflexão a mais a mais pessoas, me ajuda a saber que não estou sendo omissa. Agradecida pelo teu comentário.
Sempre me pergunto se não posso fazer mais, e percebo que o que faço não é pouco mas dá pra fazer de forma a somar mais amor, mais solidariedade, mais atenção. Esperançar e amar é uma decisão que nos tira do conforto e comodismo. Penso que deve ser nossa busca constante. Paz e bem.
Eu também me pergunto isso Marisa, o que mais posso fazer? Tenho me dedicado a trazer conhecimento, buscar ampliar a consciência da teia em que estamos todos interligados. Gratidão pelo teu comentário.
Cara Marisa teu comentário me ajudou a aprofundar minha reflexão e menciono isso no novo texto (o desta semana). Gratidão em dobro.
Gratidão pela reflexão. Fiquei até o final e também o reli para absorver ainda mais alimento para meu próprio olhar.
Compartilho amorosamente seu olhar e o ensino e passo diariamente para minhas filhas.
Não existe "o outro", somos todos interligados, uma teia, que precisa ser tecida na empatia, responsabilidade e amor.
Todos chegamos por aqui zerados, telas em branco e almejando coisas semelhantes, amor, realizações, reconhecimento....Ninguém almeja a fome, o preconceito, as dificuldades ou as buscam intencionalmente.
É preciso sair da bolha, recuar um passo e nos questionarmos, 'onde nós enquanto sociedade somos participantes do caminhar do outro? Onde nossos olhares, valores, falas e ações ressoam, alimentam e aumentam na dor do outro?'
Empatia, responsabilidade, amor, reconhecer que eu também sou e estou no outro.
Gratidão!
Eu que agradeço Fabíola pelas suas palavras. Lê-las um domingo de manhã traz alento. Faz fortalecer o desejo de trazer reflexões significativas. Tenha uma ótima semana.
Vim da extrema pobreza. Comecei a trabalhar com nove anos, sem nenhuma perspectiva além de ter algo para comer. Quando falam em meritocracia, pergunto se sabem o que é ir para a escola com a barriga roncando de fome. Entrei na faculdade com 32 anos. Se hoje tenho uma boa situação, é porque encontrei pessoas que me deram oportunidade. Talvez esteja em nossas mãos dar oportunidades a outras pessoas também. Por pouco que seja, qualquer ajuda transforma.
Não Jenny, a maioria das pessoas da minha bolha não sabe o que é ir para a escola com fome. Nem sabe o que é viver com fome. Essa distancia que criamos socialmente, nos impede de compreender com clareza como o outro vive. Por aquilo que passa. Sim, dar oportunidade. Tenho muitos exemplos disso. Ao invés de segregar e criticar, porque não ajudar? Agradeço por teu comentário. Conte mais para nós sobre tua vida, se se sentir a vontade. Adoro histórias de vida. Abraços.
Oi Nany, bom dia! Sua inquietação demonstra comprometimento. Eu entendo que nosso papel não é indignar-se com a maldade, corrupção e segregação mas sim trabalhar no limite de nossas forças para o bem, cooperando para diminuir as injustiças e enxergando verdadeiramente o necessitado como irmão provisoriamente em situação de penuria. Temos que trabalhar para minimizar está situação sem querer abraçar o mundo. Um abraço fraterno, Ána Maria.
Ana Maria te agradeço o comentário. Concordo plenamente com teu entendimento. Fazer a nossa parte. Humanizar nosso olhar. Tão simples não?
Muito sensato e real este texto. Descreveu exatamente nossa realidade e a necessidade do cidadão exercer seu direito e dever para um melhor desenvolvimento humano. Gestos tão simples como olhar para o próximo e saber que ele não é apenas um estigma da sociedade e sim um ser humano digno de visibilidade e empoderamento.
Isso mesmo Elenir, um ser humano digno de visibilidade e empoderamento. Gratidão pelo teu comentário e acrescentar mais reflexão ao tema.
Perfeito! Estamos vivendo período de retrocesso e um clamor assustador contra aos movimentos sociais em nome da moral. Que moral é essa que não há compaixão, benevolência e olhar ao próximo com a si mesmo? Sou cristã e não consigo entender os slogans que carregam Deus e família, mas que ao mesmo tempo negam a família universal e a mensagem maior deixada, "amar teu próximo como a ti mesmo". Acho que quem se diz pessoas de bem ainda não entenderam a complexibilidade dessa palavra. Por mais textos como o seu!
Adriana que lindas e sábias palavras. Sabe que essa dureza e crítica só afasta pessoas de Deus e religião. Concordo contigo e respondi algo próximo no post do Facebook - resposta para alguém que veio com agressividade em nome de seu Deus - como pode haver um Deus que discrimina, separa e segrega? O meu Deus, a espiritualidade que acredito, está embasada no amor. Gratidão por escrever
Leave A Comment