Ao ler o comentário de um leitor sobre meu texto Homens Irresponsáveis e o Machismo, pensei em como a equidade de gênero traz, para um bom número de pessoas, o medo de o homem deixar de ser homem (e, logicamente, a mulher deixar de ser mulher). O comentário, que devo dizer achei confuso ao misturar temas e conceitos sem conectá-los claramente, representa, de certa forma, o receio de que a equidade de gênero signifique perda de identidade para o homem. Não é à toa que o raciocínio do comentário seja confuso.
Em 2013, quando lancei o Movimento Humano O Homem Sensível, observei dois tipos de reações. A primeira, de reconhecimento e conforto que provinha de pessoas que enxergaram nesse Movimento Humano a transformação que viam nos homens ao seu redor ou, quando homens, eles próprios se enxergavam nele. O alívio que demonstravam me fez compreender que as pessoas se sentem mais seguras para agir quando constatam que suas atitudes e comportamentos fazem parte de um movimento mais amplo que seu círculo social.
A outra reação foi quase oposta. Houve desde incredulidade até reações agressivas contra o conteúdo. Lembro-me bem da apresentação que fiz para uma agência de publicidade e, como a reação agressiva de um de seus diretores me surpreendeu. Devo confessar que na época não consegui entender o porquê dessa reação. Afinal, estava falando com pessoas bem informadas e que, por força da profissão, costumam estar atentas às mudanças comportamentais. Hoje entendo que essa reação tinha mais a ver com o lado machista inserido nesse grupo do que com discordância técnica, propriamente dita.
O tempo passou e foi ficando mais claro que o homem estava mudando seu eixo de atuação como homem. Pelo menos na parte do Brasil que é foco de meus estudos. O papel social do homem estava se ampliando e modificando. A paternidade ativa envolvendo tarefas antes consideradas exclusivas das mães – levar ao médico, participar de reunião da escola – ganhava valor, assim como o exercício da afetividade. Abraçar, acariciar, beijar e ficar visivelmente emocionado estavam deixando de ser atos isolados e vergonhosos, embora ainda exista algum desconforto.
Privilegiar a presença de sua companheira em quase todos os momentos de sua vida e dispensar mais tempo à família em vez de ficar no “clube do bolinha” ia se tornando parte do cotidiano. Lembro que em 2015 um grupo de homens comentou que as mulheres tinham “invadido” suas peladas de futebol. Perguntei se isso os irritava. A resposta foi rápida: não. Era mais divertido, até porque, com elas por perto, a pelada durava mais tempo – virava churrasco ou bate-papo com uma cervejinha sem o estresse de ter que voltar correndo para casa.
Meus estudos no final de 2016 mostraram uma virada nesse fluxo. Uma boa parte das pessoas que ouvia começava a se sentir desconfortável com esse comportamento masculino – importante dizer que essa parte era constituída por homens e mulheres. Parecia que, ao ter se disseminado o comportamento do Homem Sensível, este estabelecia uma diferenciação consistente com o homem tradicional. O homem tradicional carregava consigo traços claros do homem das gerações anteriores: aquele homem que, para ser homem, tinha que ser fechado, ocultar sua sensibilidade. O homem que cuidava para não mesclar seu espaço social com o da mulher.
Conforme o Homem Sensível se tornava mais popular e aceito – incentivado pela comunicação de massa, que o mostrava nos seus diversos momentos e expressões – o homem tradicional parecia cada vez mais anacrônico e defasado. Esse sentimento de inadequação e, de certa forma, perda de valor social – que eu vejo como um tipo de privilégio – explodiu e ficou exposto, especialmente nos últimos anos.
Isolando os machistas de carteirinha e aqueles ressentidos socialmente que andam vociferando porque seu lugar de superioridade está mais do que ameaçado, quero focar num outro tipo de homem. Aquele cara normal, legal. Que não é agressivo com as mulheres, que vive pendente de seus filhos, mas que reage negativamente ao Homem Sensível. Noto que para ele – e para a mulher que o acompanha – o espectro em que ser homem está localizado – a masculinidade – é limitado. Ser homem consiste num modelo monocromático e simples, no qual a sensibilidade é quase seu oposto. Para ele, a sensibilidade é coisa do feminino. Da mulher. Simples assim.
Existe, percebo, uma dificuldade clara em tornar seus sentimentos e emoções conscientes. Expô-las, nem pensar. Foge da reflexão. Da autoanálise. Do diálogo. Talvez porque se veja incapaz de lidar com esse conteúdo e não goste de mostrar que não consegue. Na busca para desculpar essa falta, ironiza a sensibilidade masculina. Para evitar lidar com a própria resistência à mudança que a sociedade vem trazendo, maximiza a sensibilidade feminina como um dom, um talento natural. Como se quanto mais sensível a mulher for, mais o homem tem que ser o oposto. E, ao ser seu oposto, mais homem é. É o tipo de pessoa que vive na polaridade. Precisa dela para se posicionar. Homens e mulheres andam em trilhas distintas. Se misturar, dá sentido de bagunça, de desordem. Perde seu lugar.
Imagino a dificuldade dessa pessoa em lidar com o mundo atual. O mundo que fala em vulnerabilidade como valor positivo. Como força, e não como fraqueza. Para esse homem e sua companheira, querer mudar as regras do jogo significa feminizar o homem. Significa enfraquecê-lo e torná-lo menor. Como convencê-lo de que não é isso? Difícil. Especialmente pela pouca abertura à reflexão. Sinceramente, acredito que poderá ser o tipo de segmento que se verá engolido pelo tsunami da mudança cultural que já está em curso. Talvez já tenha sido engolido. Meio deprimido, levando a vida como sempre, fingindo que está tudo bem. Triste.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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