O mundo corporativo foi formatado por valores masculinos, brancos e heterossexuais. Acredito que poucos tenham dúvida sobre isso. Era como o poder financeiro e econômico ia se configurando através dos séculos. Foi uma escolha? Sim. Consciente. Acredito que só de uma minoria. Para saber durante o processo de formação, seria necessário ter compreendido que fazemos parte de um único sistema social, cultural e econômico no qual todos os seres humanos estamos interconectados. Essa consciência sobre o sistema só tem ficando mais clara nos últimos anos. E, mesmo assim, poucos conseguem compreender a magnitude disso.
Por conta desse meu racional, em vez de culpar a origem e a forma de poder que rege as corporações e nossa sociedade – entidades que parecem tão distantes e anônimas –, penso: como podemos cada um de nós, dentro de nosso microcosmo, evoluir para configurar um modelo de sociedade menos parcial e mais inclusivo?
Por que mais inclusivo? Porque considero mais justo e correto. Isso deveria ser por si só um bom motivo, mas, num país onde a corrupção é quase naturalizada – e posso explicar depois meu ponto de vista sobre a corrupção para quem se interessar –, entendo que todos concordem e poucos se movimentem por esse motivo.
Portanto darei outro ponto de vista: voto por uma corporação e sociedade mais inclusiva porque, se vivemos num único sistema, pouco adianta criar riqueza só para mim acreditando que isso me garantirá segurança e vida sem estresse. Quanto mais ganho, num modelo de desigualdade social, mais gasto em segurança, porque o outro lado está mais pobre. Mais perco a minha liberdade – liberdade de ir e vir, em qualquer lugar e como eu quiser. Partindo do princípio de que viver em bolha não considero liberdade. Quando as necessidades básicas e de educação não são atendidas, a violência é facilitada (fato comprovado por pesquisas nacionais e internacionais – se interessar o tema, leia o relatório do IPEA .
Violência que bate na nossa porta de casa, no nosso vidro do carro, nas ruas da cidade, incluindo shoppings bem vigiados. Não há lugar seguro num mundo de desigualdades sociais. Por causa disso, lá vamos nós, trabalhando mais para gastar mais em nos proteger, com o desejo ingênuo e equivocado de que isso nos tirará do círculo vicioso concentração de renda-desigualdade social-violência–medo que não tem fim. E não terá até a gente acordar e perceber que vivemos num sistema. Uma única malha social. Puxou de um lado, esticou de outro.
Pensando no microcosmo, existe algo que parece ser comum à maioria das pessoas: quem tem mais privilégios não os quer perder. Seja com discurso direto e honesto – por mais agressivo que possa ser –, ou indireto como aqueles apoiados na moralidade, religiosidade ou economia que irá salvar o mundo. O que se mostra fato é que essa maioria não quer abrir mão do seu status quo. Quem tem menos privilégios, cansado da situação que parece não se modificar, luta, muitas vezes até agressivamente, para gerar a mudança.
A agressividade é uma das formas de quebrar um sistema que se nega a se modificar. Como disse anteriormente num outro texto, precisa de muita força para romper com um sistema muito bem assimilado e estruturado, que não quer abrir mão do seu espaço e importância ocupada. Estão certos em agir com agressividade e provocações? Eu ajo diferente. Penso e valorizo outra forma de agir na sociedade. Sempre vou trabalhar por um caminho mais pacificado.
Só que quem sou eu para julgar a raiva social que a desigualdade provoca? Como disse num outro texto (cidadãos do bem), consigo entender o desespero de estar preso num lugar de privações – ou de excessos, porque o outro lado também está preso ao seu lugar –, só não consigo sentir o que eles sentem. A empatia tem limites humanos. Só se sente toda a experiência vivendo-a. Não se herda experiência. Se conhece, se entende e se tenta apreender racional e emocionalmente o significado. Mas a plenitude da experiência é única para o sujeito atuante nela.
Por que não querem abrir mão do status quo de privilégios que acirra a desigualdade social, se ela só traz problemas? Acredito que a maioria não consegue compreender a malha sistêmica. Há uma limitação na compreensão. Sabe dela, mas não a assimila. Também acredito que muitos veem na sua forma de vida sua única forma de operar na vida. Não conseguem se mexer nem inovar. Me lembra vários adultos que entrevisto: vejo que estão caminhando para o abismo profissional e, em vez de se abrirem para o novo e procurar – enquanto têm emprego e trabalho – se focam mais no modelo atual, que irá se desmanchar em breve. O medo paralisa.
Outros, considero que não abrem mão de seu status quo que os oprime porque colocaram nisso seu valor social. São aqueles que se sentem melhores porque podem mostrar, no seu núcleo social, um carro novo e caro, um celular desejado, um relógio ultramoderno, ou porque compraram uma roupa de marca. Para essas pessoas – uma grande parte da sociedade que o nosso modelo de evolução criou – o ter diz quem se é. Perder isso é se perder. Triste? Claro. Só que real.
Para outros, é mau caráter mesmo. Mas realmente acredito que seja a minoria. A maioria considero que se encontra no estado de semi-inconsciência, vivendo segundo o fluxo do ambiente em que está inserida. Sem se questionar, sem se perguntar. Por outro lado, que bom que mais e mais pessoas estejam buscando a reflexão. Que bom que mais e mais pessoas estejam questionando as suas verdades. Quem bom que mais e mais pessoas estejam acordando desse sono entorpecedor.
Nesta minha volta após a viagem à Índia, decidi trazer o modelo de poder em que estamos inseridos – que eu chamo de Poder Sobre – por considerá-lo urgente, que nos toca profundamente e interfere na nossa vida. Conhecer a Índia me fez questionar mais ainda os nossos conceitos de desenvolvimento e sucesso. Me fez entender melhor o sistema no qual estamos todos inseridos.
Te convido a estarmos juntos mais um ano aqui no blog e nas minhas redes sociais. Refletindo, trocando conhecimentos, discutindo assuntos e ampliando nossa visão de mundo. Minha intenção não é te convencer, e sim que você pare para pensar e (se) questionar. Acredito que seja pelo questionamento que chegamos às nossas verdades mais profundas. Vamos juntos?
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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