Algumas decisões que têm um cunho moral independentemente de sua sustentação racional. Manter o emprego de mulheres que voltam da licença-maternidade é uma delas. Quando leio matérias a respeito, é comum encontrar dados que apontam um alto índice de demissões após o período legal de impedimento de demissão ou pressão para que as próprias mulheres a peçam. Ao retratar a realidade das mulheres nessas condições, as matérias costumam trazer uma lista de fatores favoráveis para à permanência delas nas empresas. Sem dúvida sei que ainda é importante convencer alguns segmentos dos benefícios que as mulheres trazem às organizações – eu mesma costumo escrever sobre isso –, porém, se nos aprofundamos na questão, uma decisão dessa natureza envolve mais do que razões: envolve valores.
É preciso levar em conta que, segundo o IBGE, 40,5% das famílias no Brasil são chefiadas por mulheres. Apesar de a mulher não ser a única provedora em alguns desses lares (em 34% das casas há a presença do cônjuge), ela é a principal. Podemos compreender a importância da mulher no sustento familiar e como ficou para trás o tempo em que o homem era, quase absoluto, o provedor único ou principal da família. Mesmo que a ideia permeie, ainda, o imaginário de chefes e da própria organização.
Como comentei, além dos dados contundentes, vale a reflexão sobre as incoerências humanas. Por um lado, costumamos valorizar a presença da mãe na vida da criança. Pelo menos nos momentos mais relevantes, como a visita a um médico ou o acompanhamento do rendimento escolar. Muitos de nós acreditam que a presença atuante de uma mãe na vida de um filho – embora isso não signifique estar o dia inteiro com ele – contribui na criação de seu caráter e personalidade. Partindo, é claro, da hipótese de que essa mãe tem bom caráter e uma personalidade saudável.
Por outro lado, quando nos colocamos na posição de chefes ou de colegas dentro das empresas, costumamos dar foco à diminuição do tempo real de trabalho que uma mãe precisa para se dedicar ao filhos, mesmo que esse tempo seja compensado de alguma forma. Ora, essa funcionária é a mesma mãe que valorizamos por cuidar bem do seu filho. Tem coisas que vêm junto, e lutar contra essa realidade é lutar contra moinhos de vento. Um ser humano sem família, sem parentes ou afastado deles para poder ganhar dinheiro – como fazem, por exemplo, os trabalhadores filipinos para conseguir emprego em Cingapura – trabalha mais horas. Sua atenção costuma estar voltada somente para o trabalho: produzir mais para ganhar mais dinheiro ou para não ser demitido. Consideramos isso desumano, não é mesmo?
Uma mulher com filhos, com família, que busca equilibrar a vida profissional e familiar divide seu tempo, sim. E daí? Não queremos seres humanos mais “humanos” – isto é, comprometidos com o cuidado com o outro e consigo mesmo – para formar as tão desejadas corporações humanizadas? Isso tem um custo. A questão não é se ela consegue dar conta do volume de trabalho mesmo que isso signifique invadir a noite. Até porque quem tem um tipo de trabalho que permite fazer isso já o faz, com medo de ser mal avaliada e demitida. Para mim, a questão é organizar um time que permita que o outro – seja quem for – possa se ausentar em casos necessários. Possa dar prioridade à família quando alguma situação emergencial assim o pedir. Possa criar o seu filho o mais próximo possível para ele crescer saudável e com valores que contribuam para termos a sociedade, que tanto sonhamos.
Não ignoro o custo que envolve um funcionário no Brasil. Não ignoro que há pessoas que não fazem um bom trabalho e que, quando podem, abusam. Tampouco ignoro a visão lucrativa de lideranças que só enxergam os números – e sua ambição pelo bônus – acima da vida dos funcionários , os quais fazem os seus bônus serem gordos. Como disse no início deste texto, já que estamos em tempos de escolhas, precisamos, urgentemente, refletir sobre o lado moral da demissão de mulheres após o período de licença-maternidade. Sobre a disparidade entre os salários do board e dos demais níveis da corporação. Tudo está intimamente ligado e é fundamental tomar uma atitude corporativa que permita que os pais acompanhem de perto seus filhos, caso acreditemos que isso ajudará o Brasil a ter cidadãos mais conscientes e melhores. Em vez de nos revoltarmos com a sociedade que enxergamos, especialmente em tempos de pandemia, vamos agir naquilo que podemos mudar?
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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