Nos últimos anos tenho ouvido regularmente relatos sobre o trabalho análogo ao escravo no Brasil. Assim como os de violência doméstica, esses relatos têm me ajudado a compreender a realidade social e moral da nossa sociedade, retirando de mim o véu que me impediam de enxergar que fatos dessa natureza aconteciam não só nos confins deste país desigual.
Um dos fatos que mais me gerou tristeza foi saber que, em regiões distantes dos grandes centros, uma parte das pessoas que foram libertadas pelas autoridades competentes dessas condições quase desumanas de trabalho, voltava por livre iniciativa a se submeter a esse tipo de trabalho; de tão difícil que era sobreviver fora desse sistema. Mais uma vez, consequência de um país que não consegue dar oportunidade para aqueles que já nasceram esquecidos. Sem educação, sem informação. Sem conhecimento suficiente para saber que existe um outro tipo de vida, as alternativas são quase inexistentes para ter uma vida com um mínimo de dignidade.
Naquele tempo pensei naqueles que criticam os que, na sua ignorância e pouca alternativa de sobrevida, aceitam trocar seu voto por algum dinheiro. Quanta prepotência e ignorância sobre a realidade brasileira. Sobre o que é passar fome e ter um mundo totalmente restrito com a única intenção de poder sobreviver. É claro que sou contra a venda do voto eleitoral, porém, em vez de julgar as pessoas que vivem na grau máximo de pobreza e chamá-las de idiotas – como já ouvi – , que tal trabalhar para que exista um país que permita, pelo menos, uma vida digna a todos os seus habitantes? Como falar em meritocracia se já se nasce em circunstâncias abruptamente desiguais? Quem é o ignorante, afinal?
Nós todos somos herdeiros e fazemos parte de um sistema de exercício do poder que subjuga para existir – o Poder Sobre, como denominei esse tipo de poder. É esse tipo de poder que consumimos como o leite materno, sem questionar o sistema de crença e valores que o sustentava. Nós o aceitávamos simplesmente porque era “natural”. Era assim que a realidade nos era apresentada como boa e correta.
Esse tipo de poder vem sendo combatido e hoje, posso dizer, vem perdendo a guerra. Sou daquelas que acreditam que a moral que apoiava o Poder Sobre está modificada, mesmo assim, como um fantasma, ela insiste em nos assolar. Agora também no nosso microcosmo. Além do cenário da política nacional e seu envolvimento com grandes empresários e negócios – às vezes tão distantes de nós –, começamos a enxergar ao nosso redor pessoas, que conhecemos e gostamos, que vivem com valores que dizemos rejeitar.
Talvez seja essa a oportunidade de olhar para nós e ver quão íntegros somos. Quanto de coerência existe entre o discurso e posicionamento de moralidade que assumimos e nossos atos para ganhar dinheiro e viver bem. Poucos sobreviveriam a esse escrutínio. Por isso, em vez de promover uma nova caça às bruxas entre amigos, acusando e fazendo cara de surpresa, proponho que primeiro aceitemos que vivemos até agora, inclusive no nosso microcosmo, numa lama em que a moralidade convivia de bem com a imoralidade. Aceitar esse fato nos fará tomar uma ação real contra essa condição lamacenta. Condição que a maioria de nós está querendo limpar e modificar.
Ao fazer isto, olhar sem nenhum véu da ilusão a nossa sociedade e o nosso microcosmo – ao mesmo tempo, com todo o amor e compaixão pela nossa humanidade que insiste em falhar – podemos racionalizar o que é preciso ser mudado. Só conduzimos uma mudança estrutural com a consciência ativada; e para ativá-la precisamos conhecer, refletir e assumir. Recomendo começar dentro de casa e observar os vestígios da velha moralidade lamacenta. Vamos olhar nossos familiares que tanto falam de nossos valores. Vamos olhar para nossas relações. Quem fica, quem sai? Qual preço estamos dispostos a pagar por uma moral mais decente?
Lembro que, quando buscávamos uma casa para nos mudar, um dos itens tão relevante quanto os outros era onde e como o quarto do funcionário estava localizado na planta. Se gostávamos da casa e o quarto do funcionário não era decente e não haveria forma de modificá-lo, desistíamos do imóvel, independentemente do resto. É o mesmo que manter, numa recepção gelada de um prédio comercial, pessoas sendo obrigadas a vestir uniformes que não são apropriados para o frio. Ou a casinha de janelas abertas lateralmente onde fica a pessoa que cuida do estacionamento, colocada numa passagem onde o vento gela antes de partir. Quanto você repara nisso? Para mim esses detalhes falam muito dos valores de quem gerencia e comanda lugares como esses. Do tipo de poder que reina no ambiente.
Por tudo isso, quando soube do casal que parece ter tido, na sua casa, uma senhora de 61 anos em condições de trabalho análogas ao escravo – ela, uma gerente global da Avon, filha de uma cosmetóloga conhecida no mundo da beleza nacional, e ele, bom… dele por algum motivo a imprensa não tem falado –, não me surpreendeu embora tenha me entristecido. Mais um casal jovem que, fruto de um sistema de poder, insiste em manter viva uma moralidade velha e obsoleta.
Eles, assim como cada um de nós, são frutos, como disse, de um sistema arcaico de poder que subjuga, difama e isola, de alguma forma, seres humanos só por serem diferentes. Diferença que é usada para colocá-los numa posição de menor ou pior. Não me excluo de ser fruto desse sistema, por isso fico atenta a minhas atitudes que ainda possam transmitir seus valores. Nem sempre consigo evitá-las, mas comumente costumo repará-las. É uma tarefa árdua que mantenho com firmeza, porque como tenho dito: é tempo de escolhas e sei que precisamos fazer a nossa parte, firmemente, se quisermos ver o mundo que tanto dizemos querer.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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