Vivemos num sistema social no qual, para poder nos relacionar, nos concentramos em bolhas. Cada um tem a sua – é importante entender isso, porque os que se consideram mais arejados e abertos mentalmente acreditam que não vivem em nenhuma –, embora seja comum que, de fato, os mais abertos transitem por várias delas. A cada ano, mesmo os mais seletivos estão ampliando sua forma de vida, e boa parte de nós temos a nossa bolha principal e algumas periféricas, que costumam conversar entre si.
As bolhas são criadas, quando adultos, a partir de gostos, comportamentos, rotinas, ambientes em que circulamos… normalmente opções que, no fundo, refletem nossos valores. Como seres sociais, as bolhas são importantes para ativar nosso senso de pertencimento, nos trazem – ou deveriam trazer – aconchego, segurança e nos ajudam a modelar nossa identidade; elas servem de espelho que reflete formas e modus operandi. É dentro das bolhas que criamos muitas das nossas crenças que regem nossa noção de realidade – como tenho escrito há um bom tempo, a nossa noção de “realidade” é construída, em grande parte, pela cultura na qual estamos inseridos.
Fluímos bem nas bolhas que frequentamos, especialmente na principal, se fazemos o acordado pela ética que rege as suas fronteiras. Se mudarmos de ética, a probabilidade de ser expelido é grande. Por conta disso, considero importante entender que mudanças de vida incluem mudanças de ética. Evidentemente essas mudanças não precisam ser radicais, mas depende da rigidez da ética estabelecida na nossa bolha principal versus quão distante o ambiente em que circulamos hoje está do ser em que iremos nos transformar ao atender o chamado da nossa alma. Se esse ser em que iremos nos transformar for muito distinto do atual, o distanciamento do nosso grupo principal de referência pode ser gigante. A ponto de você, passados alguns anos, mal conseguir compartilhar os mesmos gostos dos seus antigos amigos.
É nesse tipo de encruzilhada que boa parte de nós nos encontramos neste difícil ano em que a pandemia da covid-19 nos obriga a desacelerar e admitir nossa pequenez perante a vida e a natureza. Decidi escrever sobre este tema após uma das minhas Conversas Honestas – série de lives em que abordo as questões atuais da nossa sociedade – na qual o meu convidado, Sandro Rego, contava sobre a mudança de vida que fez ao sair do posto de executivo, virar estudante no Canadá, se conectar com o voluntariado e, por fim, aterrissar em Portugal e abrir seu próprio negócio.
Enquanto ouvia o Sandro pensava, em quão importante é ter um companheiro ou companheira que queira, também, mudar de bolha. Quando converso com executivos que desejam fazer essa mudança, um dos meus pontos principais é se eles têm a certeza de que tanto eles como a sua família nuclear estão dispostos a mudar de bolha, e se todos têm clareza sobre as consequências que isso pode trazer. É difícil prever o futuro e tudo o que irá se passar até a vida se reorganizar. Às vezes leva um tempo, como diria um sábio amigo meu: “o tempo que o tempo tem para acomodar tudo dentro e fora de nós.”
No mundo executivo as bolhas costumam ser mais fechadas na sua própria realidade. Os ambientes sociais que se frequentam são bastante parecidos – é só observar os hotéis em que os executivos costumam ficar; se não olhar pela janela, provavelmente será difícil reconhecer em qual cidade se está –, os gostos e estética são marcados até por significar uma posição social. Num mundo em que a hierarquia é relevante – e subir nela representa sucesso e vitória –, os seus símbolos e rituais são bem definidos e estabelecidos.
Embora isso esteja mudando, a grande maioria dos executivos vive seguindo essa ética por mais que a alma – e até o corpo – mande muitos sinais de fumaça para rompê-la. Tomar a decisão de sair dela requer estar bem ancorado no autoconhecimento, na lucidez de saber quais são as perdas – os ganhos são fáceis de serem absorvidos – e, se desejar levar para a outra fase da vida a relação amorosa que se tem, combinar os prós e os contras dessa decisão. Porque o nosso par pode ser um suporte alavancador ou detrator nessa virada.
Os casais se juntam pela similaridade de valores e por compartilharem projeções sobre o futuro. Quando um dos dois muda de visão de mundo e, portanto, de expectativas em relação ao futuro – algo inevitável com o passar dos anos –, a relação precisa também ir se moldando a essa nova ética. É importante dizer que é justo um dos dois não querer a mudança. Afinal o contrato combinado foi estabelecido em outros termos. Sempre poderemos tentar um meio-termo que abarque os dois lados se contarmos com a intenção real de ambos para que a relação sobreviva; para isso ambos deverão ceder nos seus sonhos e aspirações. Chegar a essa harmonia exige, necessariamente, que cada um tenha que avaliar quanto a relação é, realmente, relevante para a nova fase de vida que se inicia. Pergunta difícil a ser feita, mas necessária.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
0 Comments
Leave A Comment