Em 2014 apresentei para um cliente a possibilidade de que o consumo de maquiagem no Brasil viesse a cair. Na época, a possibilidade que levantava não se embasava em hábitos de consumo ou comportamentos, mas em sentimentos que vinha captando em minhas pesquisas. Estava ficando evidente – pelo menos para mim – que a busca por maior autenticidade de ser estava se fortalecendo a ponto de chamar, fortemente, a minha atenção. Essa autenticidade, claro, poderia, lá na frente, respingar no mercado de maquiagem, que, além de enaltecer a nossa beleza, também pode disfarçá-la.
O que não entendi na época foi que essa busca por autenticidade nos levaria, anos mais tarde, a ter dificuldade em afirmar traços que possam ser considerados generalizados entre os brasileiros, sem que essa afirmação possua uma boa dose de superficialidade. A velha e confortável avaliação de que “o” homem brasileiro ou “a” mulher brasileira é assim ou assado não funciona mais.
A busca por maior autenticidade, embalada pelo desejo de maior liberdade de ser, fragmentou a sociedade brasileira de tal forma que, queiramos ou não, já a tornou plural. Muitos podem me dizer que ela sempre foi, devido ao tamanho continental do país, às suas diversas imigrações, que fizeram das regiões do Brasil vários Brasis, e, ainda, à sua desigualdade social, que cria realidades tão diversas até na mesma cidade. Sim, é verdade, o Brasil sempre foi grande e diverso, só que, mesmo nessa sua diversidade de origens e culturas locais, existiam elos consistentes – comercialmente e politicamente criados e explorados, sem dúvida – que uniam o aspiracional da maioria.
Hoje essa realidade é diferente. Podemos dizer que os brasileiros estão polarizados – sim, estão –, só que não é só a esses dois polos que estou me referindo. No meio deles há múltiplos fragmentos que se dispersam e se reagrupam conforme o tema. Ora estão num grupo compartilhando os mesmos ideais e, de repente, se o tema mudar, se afastam sem pestanejar. Todos estamos vivendo essa fragmentação. Amigos queridos de quem gostamos e de quem, sem planejar, começamos a nos distanciar. Novas pessoas entrando no nosso universo – ou nós no delas? –, movidas por interesses que aos poucos vamos descobrindo que faziam parte de nós. Um despertar que só está começando.
O período de transição de valores que estamos vivendo produz essas modificações nas nossas vidas. Transição acentuada vertiginosamente pela pandemia da Covid-19. Será que estamos prontos para essa pluralidade? Obviamente não. Nem cada um de nós, nem as empresas, e muito menos os políticos.
Mesmo sonhando com a liberdade de ser, quando convivemos com tantas possiblidades – situação aqui retratada como pluralidade –, muitos de nós desejam encaixar tudo novamente nos velhos e deformados moldes. Só que, como disse em outro texto, chegamos a um ponto de inflexão na transição de valores em que não dá para voltar para trás: a nossa moralidade mudou e, queiramos ou não, a pluralidade chegou para ser nossa nova realidade.
O caminho é de aprendizado intenso. Haverá pessoas que vão querer controlar essa variedade – até querer voltar aos tempos da censura –, outros ficar mais fechados nas suas bolhas comunitárias, sociais ou religiosas, tentando, assim, evitar enxergar a nova realidade em vez de aprender com ela. Ainda bem, há sempre aqueles que entendem o vento do novo tempo e preferem velejar por ele.
Estamos numa fase em que, por mais idade que tenhamos, por mais que pensemos ter um bom conhecimento, viagens por culturas distintas ou cabeça aberta, nem sempre saberemos ao certo como agir. Não fomos criados para a pluralidade e lidar com ela significa ter que se educar para ela. Isso passa pela difícil tarefa de aprender a aceitar o ponto de vista do outro, desestruturar nossa ideia do que é certo e do que é errado – pelo menos no que diz respeito ao julgamento do outro – e se permitir entender que cada vez mais será difícil ter grupos em que seus participantes coincidam quase totalmente em ideias e valores. Com exceção das bolhas mais autocentradas, fechadas e rígidas. Somente nelas há coesão.
Estamos começando um novo capítulo na história da nossa sociedade e, para lidar com esses tempos confusos e plurais, a melhor – e maravilhosa – maneira de chegarmos a esse novo patamar social é a humildade. É nossa forma de reconhecer, abertamente, que somos todos aprendizes e alinhados com o novo tempo. Será que conseguimos?
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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