Desde que decidimos que devíamos ser felizes enquanto estivéssemos vivos, abrimos a porta para a ansiedade entrar, retumbante, na nossa vida. Alguns podem me perguntar: como assim? Existe a possibilidade de não querer ser feliz? Sim, existe. Ou melhor, existia. Nossos avós e bisavós, com raríssimas exceções, não tinham o sonho da felicidade como meta de vida da forma como nós o temos. Eles queriam, no máximo, uma vida confortável e estável.
Fomos nós que incorporamos na prática a ideia de “felicidade na Terra”; ideia gerada pelo esforço de racionalizar a vida – movimento que buscava “desencantar” o mundo, tido como escuro pelas suas superstições e crendices. Com a racionalização da vida também desmistificamos as nossas crenças religiosas – entre elas a ideia de “paraíso no céu e sofrimento na Terra” – e corremos em busca de um sentido para a vida que tivesse a ver conosco: ser feliz vivo e o mais cedo possível.
Aos que pensaram que o sentido da vida poderia caminhar para uma visão mais espiritualista, lamento informar que isso só aconteceu para uma parte da nossa sociedade e depois que essa parte considerou que foi muito além do que deveria no processo de racionalizar a vida.
É claro que essa corrida pela “felicidade na Terra”, aqui e agora, gerou em nós ansiedade e insatisfação. Buscamos no Ter – primeiro, bens de consumo e depois experiências, como viagens, por exemplo – e descobrimos que, embora nos ajude, não necessariamente sustenta nossa felicidade o resto do ano. Assim, uma parte entendeu que o Ter não daria inevitavelmente a felicidade e foi tentar uma vida monástica no meio do mato.
O ambiente bucólico e os mosquitos logo mostraram que a vida no mato não é para todo mundo. Há aqueles que sonhavam com areia do mar e decidiram abrir sua “especial e diferenciada” pousada; rapidamente descobriram que lidar com hóspedes e mão de obra local nem sempre é tão prazeroso quanto imaginavam.
Após essas experiências pessoais ou ou de alguém próximo, iniciou-se a busca por novos caminhos em direção à “felicidade na Terra”. Com as experiências vividas anteriormente, o conceito de Ter foi reformulado: o sonho das décadas de 80 e 90, com seus ícones de poder associados a bens caros e luxuosos, pertence a um passado desinteressante, não porque não seja legal, mas porque o preço que se paga por ele parece alto demais. Por outro lado, a vida monástica nos impede de viver bons prazeres dos quais não queremos abrir mão. Assim, já precisamos trabalhar, que tal buscar prazer no trabalho?
A pandemia da Covid-19 nos pegou nesse momento de repensar o nosso conceito de vida feliz no nosso microcosmo – me refiro, é claro, à parte da população que se identificou com os pontos que mencionei anteriormente. Como já escrevi antes, estamos numa sociedade plural e há, com certeza, pessoas que ainda buscam reviver a década de 90 com seus ícones de poder, outras que adoram o bucólico mato ou aquelas que estão buscando um local para abrir sua pousada, assim como não tenho dúvida de que existem aquelas que estão pesquisando um mosteiro para estudar e fazer um sabático.
Acredito que pouca coisa tenha ficado realmente igual após tantos meses de pandemia. Questionamentos, discussões, reflexões, entendimentos, rompimentos, exaustão, alegrias, medos e coragem. Tudo vivido em poucos meses. Alguns dizem que redescobriram o valor da família. Outros não veem a hora de ficar longe dela, nem que seja por um tempo. Será que precisamos de tanto? – alguns se perguntam. Outros têm a certeza de que precisam de mais – e o difícil caminho da poupança se mostra como uma meta.
Talvez seja o momento de equilibrar sonhos e expectativas. Talvez seja o momento de entender quais são os fatores que nos trazem bem-estar. Sim, aquele estado emocional que se mostra mais duradouro e parece ser menos intenso do que a felicidade – o que pode nos levar a questionar, por que precisamos que tudo seja muito? O bem-estar pode ser obtido com pequenas mudanças comportamentais, quando pacificamos nossa mente, aliviamos nossas tensões, relaxamos nossa forma de ver o amanhã. E entendemos que o sinônimo de eterno feliz pode ser um fluir pela vida, com seus altos e baixos, amando e sendo amado, vivendo os pequenos e, ocasionalmente, os grandes prazeres da vida. Talvez possamos compreender, por fim, que o suficiente também é bom e nos faz feliz.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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