Viver em tempos prolongados de pandemia exige da vida um segundo, terceiro, quarto olhar. Exige avaliar se realmente queremos conviver com a pessoa que está ao nosso lado, se a empresa em que estamos é a empresa que realmente nutre além do nosso bolso. Exige reorganizar a nossa forma de lidar com o dia a dia. Exige paciência, imposição, estabelecer novos limites, novos fluxos e novas dinâmicas. Enfim, exige.
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E assim temos vivido desde que a pandemia se instalou: exigindo de nós decisões há muito tempo adiadas ou até ignoradas. Quando em 2020 escrevi que estávamos em tempos de escolha, não imaginava que meu texto ia ser tão profético. Iniciei 2020 com a etapa nordestina do Projeto Uno – pesquisa que realizo desde 2010 para acompanhar os valores da nossa sociedade – e notado que estávamos decidindo e colocando em prática quais valores queríamos que regessem nossas vidas.
A pandemia e o governo federal atual, junto com os principais políticos que foram eleitos graças aos nossos votos – é sempre bom lembrar –, têm nos colocado contra a parede: precisamos escolher os valores que regem nossas vidas e influenciam nossa sociedade. Hoje conseguimos entender que a distante “sociedade” mexe com nossa vida. Graças à polarização, estão claras as principais vias que se colocam como opções.
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Por um lado, tem o grupo que acredita que o dinheiro salva o mundo. Entendo esse pensamento. A visão de mundo que o sustenta se estabeleceu, especialmente, no último século. Eu mesma fui criada e acreditei nessa ideologia até algum tempo atrás. Com dinheiro tudo se salva. Muitos dos que pensam assim também acreditam na meritocracia, sem se importar que, num país com tanta desigualdade social, as pessoas não saiam do mesmo ponto de partida.
A desvantagem nasce no berço. Sendo assim, ficam só os mais preparados – com maior capacidade financeira para isso acontecer.
Esse grupo prefere dizer que ficam os mais fortes e esforçados. É sua forma de justificar tamanha injustiça. Para eles, se a pessoa não conseguiu é porque não se esforçou o suficiente. Esse é o pensamento dessas pessoas. Sentem lástima pelos mais pobres, deficientes, doentes ou com histórias de vida que os prejudicam nessa corrida desigual; mas – e sempre tem um mas – a vida é assim, dos mais fortes. É a lei da natureza, dizem.
Não creiam que nesse grupo só tem ricos, bem de vida ou brancos. Não. Essa ideologia permeia todas as camadas sociais e raciais. Faz parte do sistema estrutural do capitalismo. E estamos nele, pelo bem – sim, porque tem muita coisa boa que o capitalismo trouxe – e pelo mal. Os menos afortunados – neste texto, aqueles que nasceram com menos condições de competir – que possuem essa visão de mundo, ou lutam desesperadamente para chegar lá, ou vão vivendo, se acomodando, consumindo o que podem e como podem. O consumo é seu grande prazer.
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Existem aqueles que acreditam que deveria haver mais equidade. Que vê a pandemia como um exercício de solidariedade, como oportunidade para rever os pontos em que erramos para chegar ao tipo de sociedade que construímos.
Que a desigualdade social é um câncer que deve ser extirpado.
Para corrigir rotas. Um grupo que questiona, que briga, que age. Um grupo que pensa que é nestas horas que o governo federal deveria entrar com sua força auxiliadora para permitir, com dignidade, que as pessoas fiquem em casa. Um grupo que se assombra a cada dia – porque a cada dia as decisões governamentais sobre para onde o dinheiro está sendo destinado são de horrorizar: não há dinheiro para educação – corte de 40% no MEC* – nem para auxílio emergencial, só que há a destinação de R$ 8,3 bilhões para submarinos nucleares e R$ 7,8 bilhões para reajuste de salários de militares*. É evidente que o problema não é a falta de dinheiro.
Todo governo tem coisas boas e coisas ruins. A alternância no poder ajuda a corrigir as rotas. A melhor forma de avaliar um governo é analisar seu tronco principal ideológico. A raiz de suas decisões. A análise que fiz é simplista, eu sei. Mas a partir dessa simplicidade meu convite é começarmos a avaliar o que realmente nos importa. Do tronco principal ideológico há muitas vertentes que confundem a gente; vamos por partes. Em um ano teremos eleições presidenciais. Espero realmente que consigamos evoluir para pensar qual a base de valores – o tronco principal – que queremos para o país.
*Dados da Deputada Federal Tabata Amaral.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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