Uma das coisas que mais me emocionou a primeira vez que assisti o Cirque du Soleil foi o olhar atento dos homens que se colocavam embaixo das crianças acrobatas. Nem piscavam os olhos tamanha a consciência da responsabilidade que sabiam ter, entanto as crianças, totalmente seguras que estavam sendo cuidadas, voavam pelos ares da tenda fazendo sua arte acontecer. Aquilo me fez refletir como na vida para expressar plenamente a nossa arte de ser, precisamos ter confiança que o outro irá nos ajudar e suportar quando necessário.
Vivemos numa sociedade que foi construída com base no individualismo, processo social lógico quando lembramos que ele surgiu como resposta a nossa vontade de fugir como diabo da cruz das sociedades comunitárias que nos oprimiam vigiando e nos obrigando a ser aquilo que não queríamos ser, nem viver. Sempre considero um pouco ingênio o discurso às vezes alterado dos críticos ferrenhos do individualismo, sendo que muitos deles hoje se beneficiam de ter uma vida diferenciada da média, graças a esse movimento. Por outro lado, sei que o individualismo, assim como todo movimento social que se expande por muito tempo, tem trazido grandes malefícios à sociedade. Por isso, instintivamente estamos caminhando para uma releitura das comunidades.
Carl Yung dizia que a sociedade caminha em polaridades, indo de um extremo ao outro, numa espiral ascendente – o que significa que não voltamos ao mesmo ponto mas resignificamos um conceito em resposta aos erros cometidos na polaridade oposta, e nesse ascender, carregamos os benefícios dela. Agora estamos resignificando o conceito de comunidade, compreendemos que sozinhos somos menos do que em grupo. Que ter ajuda é melhor do que enfrentar tudo só. O bom desta abertura ao comunitário, é que muitos de nós sabemos que sobrevivemos sós – embora considero ilusório pensar que chegamos onde chegamos por nossa única e exclusiva capacidade, sempre houve alguém que nos estendeu uma mão – mas sabermos que é possível viver de forma mais isolada nos traz o conforto para a união com o outro. A energia de união é diferente, é por escolha, é para ficar melhor, mais doce e leve, não por necessidade e muito menos por obrigação. Essa consciência muda tudo.
Entendo que a força que nos libertou do comunitário antigo devia ser extrema para mudar toda uma realidade social. A crença que estamos sós no mundo nos trouxe garra e nos fez progredir de forma impressionante mas também nos trouxe dureza e prepotência. Quando estamos conscientes que contamos com alguém, nossa mente relaxa, nosso coração se enternece e nossa alma se expande. É nesse estado de espírito que desenvolvemos a expressão de nosso ser. Com harmonia, força, firmeza, consistência e também, leveza. A minha maravilhosa analista uma vez me contou sobre um estudo que mostra que os animais que dormem protegidos por covas costumam ser mais dóceis dos que dormem ao ar livre, que pelo senso de proteção costumam ser mais tensos e agressivos. Sentir-nos só, sem confiar em ninguém, é como dormir ao ar livre, precisamos estar atentos o tempo inteiro em atitude de proteção e resguardo. Podemos ter sucesso assim, chegar onde nos propusemos mas com certeza faltará doçura e poesia na nossas vidas.
Buscar nos grupos o encontro e a convivência, confiar nos outros, compreendendo a humanidade no outro e em nós mesmos, abrindo mão da perfeição ilusória das relações sem erros, tem sido a escolha de mais e mais pessoas que estão construindo esse novo mundo em transição. Reconhecendo que estar em grupo significa responsabilidade, fazendo com que o individualismo perca espaço e mantendo nosso individual para a qualidade do grupo. Resignificar as comunidades é um dos claros sinais de como os Movimentos Humanos – estudos da Behavior sobre a transição de valores e crenças sociais e base do nosso blog – estão encontrando sua forma de expressão na sociedade.
Decidirmos por sair do individualismo para a colaboração e o conforto de se sentir parte de um grupo, é uma escolha que só nos fará mais livres para expressar nosso ser com toda intensidade; assim como os artistas do Cirque du Soleil, conscientes um dos outros, fazendo individualmente o seu melhor e juntos fazendo um dos mais bonitos espetáculos que o mundo moderno foi capaz de criar.
P.S. a foto do Cique du Soleil é do espectáculo Luzia, lançado em 2016 por eles.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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