Conversando com um amigo que acabou um casamento de dezesseis anos, pergunte há quanto tempo estava indo mal a relação. A resposta me chamou a atenção: “A relação ia mal. Só que a gente se acostuma e nem sequer se dá conta de que está ruim”. A fala do meu amigo me tocou profundamente numa semana que venho refletindo sobre nossa participação cívica (veja meu último post, “O Silêncio do Cidadão do Bem”). Me fez pensar no quanto a gente se acostuma com as coisas, sem questionar se estão certas ou erradas, se são boas ou ruins, ou, se poderiam ser melhores.
Esse raciocínio ultrapassa, obviamente, as relações amorosas e pode ser aplicado a todo tipo de relação. À afetiva, como com aquele amigo que você nem gosta tanto, mas com quem continua convivendo, talvez por medo da solidão. Ao trabalho que há muito tempo deixou de dar prazer ou interessar. Ao dia a dia, ao estilo de vida… a gente se acostuma… Acostuma a sofrer bullying dissimulado por uma piadinha, só porque se é mulher ou gay no ambiente de trabalho. A gente se acostuma a ser maltratado pelas empresas prestadoras de serviço, especialmente em mercados com pouca concorrência. Da mesma forma como a gente se acostuma a continuar a dormir com alguém que, há tempo, deixamos de desejar e amar como companheiro de vida.
A gente se acostuma à violência urbana brasileira, que mata tanto ou mais do que diversas guerras civis mundo afora. Violência que matou a menina, Ágatha Felix, de apenas oito anos de idade, quando estava dentro de uma Kombi com seu avô, no Rio de Janeiro. Acostuma à comoção que uma notícia dessas traz à nossa monótona vida. Às conversas sobre a dificuldade da vida no país, às discussões sobre quem é o culpado e quem não é, muitas vezes regadas com uma cervejinha. A criticar o país, os governantes e todos os que têm poder sobre nós. A gente se acostuma a que a notícia e discussão gerada morram rapidamente, assim como nossa indignação como cidadãos. Até o próximo fato que alimente mais uma nova onda de comoção. A gente, de fato, se acostuma.
Alguns podem me dizer que é uma forma de defesa. Pode ser. Outros podem me dizer que é pelo sentimento de incapacidade de modificar o contexto social. Concordo, embora comece a discordar. Concordo que possa existir essa ideia de incapacidade. Por outro lado, acredito que, se não trouxermos para nós a responsabilidade de mudarmos o contexto, nem que seja restrito ao nosso redor, nada se modificará.
Tem outro ponto que a conversa com meu amigo me trouxe: a ideia de não termos direito a algo melhor. Isso é triste. E real. Pensar que temos que aceitar o que está ali, sendo apresentado como “normal”, pode ser produto de baixa autoestima – que tira de nós o protagonismo de nossas vidas e a consciência do direito de termos o melhor – ou, então, a falta de outras referências.
Lendo os comentários do meu texto da última semana, parei num postado na própria página do blog: “sempre me pergunto se não posso fazer mais (…)”. Que maravilha existir a dúvida sobre sua própria atuação. Que maravilha se questionar sobre si próprio. E os demais? Como se mover desse lugar de apatia social? Creio que fui, desde jovem, alguém inconformada com o status quo. Independente de ser bom ou ruim para mim. Ser assim facilita os questionamentos, eu sei. Facilita não ser levada pela manada social. Porém, mesmo não sendo uma questionadora nata, vou contar duas ações que vejo que fazem a diferença para diversas pessoas e fizeram para mim também. Particularmente, têm me ajudado a sentir-me mais protagonista de minha vida e da sociedade onde estou inserida.
A primeira ação é o autoconhecimento. Para reconhecer e superar inseguranças e medo. Limitações e potencialidades. Para mim, serviu também para saber o que me rege, quais crenças criam meu conceito de realidade. Descobrir e entender quem eu sou. Há anos invisto em terapias, análises e leituras sobre o tema.
A segunda ação é o conhecimento. Sem saber com profundidade os fatos, suas raízes e braços que estão ligados à nossa vida, não temos como operá-la com lucidez. Sem esse saber, a vida flui na superficialidade da manada social. Somos levados pela vida e pelos outros. Ter conhecimento sobre a sociedade, sobre as relações, sobre aquilo que rege meu microcosmo é fundamental para mim. Me traz segurança para agir. Me fortalece.
Essas duas coisas estão ao alcance de qualquer um. Da minha bolha social, pelo menos. Basta querer deixar de se acostumar com o não saber. O não saber, entendi, também é uma forma de não se responsabilizar. A superficialidade no saber é uma opção. Ouvir somente uma versão dos fatos – e que ajuda a deixar nossa consciência mais ou menos tranquila – é outra opção. Optamos o tempo inteiro entre a ignorância e a responsabilidade que o saber traz. Entre viver a vida em toda a sua potencialidade e não acostumar com a mediocridade. Afinal, a gente se acostuma até com a dor. Por que, então, não procurar se acostumar com a vida plena?
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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