Desde março fizemos parte do grupo que fez e pôde fazer a sua parte e se isolou. A partir do nosso lar, que nos acolheu e aconchegou, acompanhamos atentamente as informações daquilo que seria a primeira – e provavelmente não a última – pandemia de nossas vidas. Os meses foram passando e conseguimos, junto com o mundo inteiro, ir descobrindo aos poucos o que era uma pandemia in loco, o que o coronavírus representava e qual era a melhor maneira de evitá-lo.
Comemos como nunca o fizemos em casa e bebemos vinho praticamente toda noite – confirmando que fazemos parte da cultura da felicidade que se embasa na autoindulgência e tem sua fraqueza em suportar tempos mais duros, com um de seus pilares. Num determinado momento, meu marido e eu, parecendo obras vivas de Botero, entendemos que a pandemia ia demorar mais do que pensávamos e iniciamos nossa volta à rotina saudável. Retomamos o exercício físico por vídeo, iniciamos caminhadas pelo bairro descobrindo pracinhas e riachos que nem imaginávamos que existissem por perto.
Propositalmente nos afastamos das notícias e, com isso, dos jogos políticos que têm menos a ver com cuidar de vidas e mais com cuidar de interesses próprios. Resolvemos investir nosso tempo em ações produtivas e culturais. A nossa sala de TV, criada para as visitas esporádicas da minha sogra, nos acolheu no nosso mergulho de filmes e documentários que o streaming trazia para dentro do nosso lar.
Reinventamos nossa forma de trabalhar estranhando a tela do computador, descobrimos como usar os vários aplicativos de reuniões virtuais e partimos para as lives, seja como promotores, como espectadores ou participantes. Com o tempo, como todos, cansamos um pouco delas mas as aproveitamos para aprender, trocar e discutir assuntos que antes não iríamos nos esforçar para conhecer. Quando vimos, estávamos novamente num ritmo forte de trabalho, com reuniões por vídeo que demonstraram que o brasileiro pode ser pontual. Como aconteceu com quase todo ser humano em 2020, foi o ano de criarmos novas rotinas, habilidades e relações com o digital.
Chegando quase ao fim do ano, acreditamos, ilusoriamente, que iríamos passar ilesos da realidade paralela que a covid-19 cria. Ledo engano. De repente fomos sugados para esse mundo paralelo: o mundo dos que vivem a covid-19 de UTI, de risco de morte, de apreensão constante, de medo, de tristeza e, ao mesmo tempo, de fé, de acolhimento dos amigos e familiares. Como num jogo digital, fomos inseridos numa realidade que de virtual não tem nada, mas que, graças ao cuidado e à sorte, só víamos na televisão.
O que dizer quando isso acontece? Para quem pensa que a higienização da espécie é um ciclo natural da vida no planeta e, mesmo lamentando, considera que é necessária, só posso dizer que se a humanidade evoluiu – e acredito que, sim, ela tenha evoluído – é para que possamos compreender a nossa interconexão e que toda vida, mesmo dos mais fracos e frágeis, tem valor e necessidade no sistema como um todo.
Para quem acredita que o vírus é uma invenção para dominar o mundo, só posso pedir com todas as minhas forças que essa ideia conspiratória seja verdade; assim, o pesadelo que é viver em suspenso na expectativa de receber a chamada do hospital para ter notícias do ser amado se desfaria como bolha de sabão no ar.
A brutalidade com que o vírus ataca o organismo, como num jogo de roleta-russa, só mostra quão frágeis podemos ser. Não importa se é velho ou jovem, se é mais frágil ou do grupo de risco, importa, ao final e ao cabo, que é um ser humano que você ama e que gostaria que estivesse ao seu lado rindo e até enchendo seu saco.
Essas semanas vivendo esse pesadelo, não posso deixar de pensar nos médicos e nas equipes que cuidam desses pacientes. Em alguns dias, a voz que ligava era amável e amorosa. Em outros fria ou até dura. Como ficar com raiva? Se esses profissionais estão dia e noite vivendo esse pesadelo desde março? Se nós, que estamos poucas semanas lidando com esse pesadelo já estamos arrasados? Eles são o único elo que temos com quem amamos. Impedidos de nos aproximar até do hospital, compreendemos que é pela atitude e comportamento do coletivo, algumas vezes negligente, que as pessoas se infectam e, como consequência, têm que viver a doença isoladas dos que amam.
Chegamos perto do Natal em suspenso, orando e pedindo, mesmo por aqueles que nada ou pouco fazem para evitar propagar o vírus. Mesmo por aqueles que vivem na bolha paralela de fora da “UTI da covid” porque esse vírus veio para nos ensinar muita coisa. E sinceramente espero que, honrando tanto sofrimento, possamos nos abrir para aprender.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.