Conheci a lenda de Kokopelli há muitos anos. Ela está presente em diversas culturas e, apesar de ter, algumas variações, mantém a mesma simbologia. A que eu conheci foi contada por uma descendente de índios dos Estados Unidos.
Diz a lenda que uma tribo estava passando por um longo período de seca. Por mais oração que fizesse, a chuva não chegava. O alimento estava sendo racionado e em pouco tempo acabaria. A tribo começava a perder as esperanças sobre seu futuro. Assim como o solo, os membros da tribo estavam ficando cada vez mais secos e áridos.
Quando parecia que não havia mais nada a se fazer, um viajante solitário apareceu caminhando tranquilamente. Como de costume, foi recebido pelo chefe e, mesmo sem ter nada a oferecer, foi convidado a passar a noite com eles. Quando todos, no fim do dia, se juntaram ao redor da fogueira, contaram ao viajante o que vinha acontecendo. Contaram como a seca estava acabando com a saúde e as esperanças de todos ali presentes. Entristecidos, contaram como suas preces não haviam sido ouvidas.
Comovido pela história, Kokopelli tirou de sua sacola uma flauta. Levantou e começou a tocar sua música melodiosa. Dançando e tocando sua flauta, ia fazendo círculos ao redor da fogueira, ora direcionando a flauta para a terra, ora para o céu.
A música de Kokopelli foi convidando os presentes a esquecerem, por um breve momento, o seu infortúnio e se entregarem à melodia que aquecia novamente seus corações. Aos poucos, os membros da tribo se viram envolvidos pela música de Kokopelli e começaram a dançar ao redor da fogueira. Mais e mais pessoas iam se aproximando, chamadas pela música de Kokopelli. Após um longo período de escassez, a tribo voltava a celebrar o simples fato de estar viva.
Conta uma das vertentes da lenda que, naquela noite, Kokopelli se apaixonou pela filha do chefe da tribo e que ambos ficaram dançando a noite inteira. No dia seguinte, quando o dia apenas começava a raiar, nuvens carregadas foram tomando conta do céu. Trovões caíam com força, fecundando a terra e acordando os incrédulos moradores, que, ainda entorpecidos pela música de Kokopelli, mal conseguiam acreditar no que estavam vendo: o milagre da vida voltava a se manifestar.
Diz a lenda que, quando foram buscar Kokopelli, ele já tinha partido. Ele tinha partido muito antes de o sol nascer. Partiu deixando para trás a confiança e a fé que tornam a vida possível. A lenda ainda conta que, após nove meses, nasceu um lindo bebê, que liderou a tribo por uma longa fase de abundância.
Lembrei dessa lenda jantando com uns amigos. Lembrei porque penso que há pessoas que costumam ser Kokopelli na vida das outras. Elas chegam de repente, renovam a confiança na vida com sua melodia e partem, muitas vezes sem terem sido notadas. Às vezes, nem os próprios Kokopellis modernos conseguem perceber o bem que fizeram. Acostumados a enxergar o resultado final como o único que vale, menosprezam a importância do seu papel no processo de transformação do outro. Nem pensam que, às vezes, o melhor papel possível é fecundar um terreno árido. É trazer vida a um ambiente inerte. Deixá-lo vivo para que continue, sozinho, seu próprio destino. Um destino que nem chegarão a saber qual será, porque estarão em outras terras necessitadas de sua música para continuar a existir.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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