Difícil falar sobre o que significa a morte da vereadora Marielle Franco do Rio de Janeiro. Difícil porque para compreender tudo o que essa morte representa precisamos ter uma clara visão sistêmica do momento da sociedade e como o poder opera. Eu estou no processo de saber e entender melhor a complexidade que é nossa vida social. Sou uma aprendiz estudiosa e esforçada que compartilha suas descobertas aqui com vocês. Assim, a pretensão com este post é dividir primeiro a minha tristeza, profunda, pelo momento que vivemos; e segundo, contribuir com a reflexão que essa morte promove.
Fomos criados cercados de muros feitos de crenças. Muros que cercavam nossa realidade que acreditávamos piamente que eram únicas. Muros que nos distanciam e nos delimitam. A delimitação permite deixar claro quem somos. Isso nos traz identidade. Nos assegura que somos o que pretendemos ser. Ajuda a nos colocar no mundo e obter dele aprovação. Fomos criados para ser a partir da diferenciação: sou pobre na medida que sou diferente do rico. Sou mulher na medida que sou diferente do homem. Sou estrangeira na medida que não sou brasileira, e por aí vai.
Essas crenças que nos delimitam foram por muito tempo sólidas e firmes como o concreto de um muro. Porém, nos últimos séculos, se por um lado isso se desdobrava em modelos lineares e limitados como caminhos que seguíamos quase sem discutir; por outro, nossa alma foi buscando para além do muro, além do limitado, além da restrição. Esses muros foram se desmoronando tal qual o muro de Berlim. Foram se arejando, mostrando através de seus buracos que outras realidades eram possíveis. Que outra moral e ética existiam. Para o bem e para o mal.
Só que é tão forte para nós a ideia da delimitação para dizer quem somos, que apesar dos benefícios que todos estamos tendo pela flexibilidade, pela possibilidade de ser diferente; no momento que esses muros estão caindo em todos os territórios físicos, políticos, econômicos, sociais; reagimos contra. Começamos a construir novos muros com as velhas crenças.
E o Poder Sobre que tanto está perdendo com o arejamento, se reorganiza. Aproveita o medo e a perda de poder individual, e estimula a separação. A classe que conseguiu sair da linha da pobreza e cresceu pensa que quase todo pobre é ladrão ou vagabundo. Ignorante, por obra e graça de si próprio, já que é vagabundo, merece o lugar que ocupa na sociedade. Para eles, a ideia de higienizar a sociedade é uma necessidade e saída. Todos deveriam ser limpinhos e organizados, como eles. Portanto, pobre quanto mais longe melhor. Se morre alguém na periferia pensasse logo que faz parte daquele ambiente. Se preocupam com as plantas colocadas na 23 de maio em São Paulo – afinal o desejo é se sentir parte do primeiro mundo higienizado – sem se importar se tem esgoto na comunidade a poucos quilômetros dali.
Do outro lado do muro, a ideia que se tem é que todo rico ou alguém de classe média só alcançou o que tem porque abusou de pessoas mais pobres. Que todo patrão só ganhou dinheiro de forma suja, com ajuda de amigos poderosos e de explorar os pobres. Que todo bem obtido se fez através do exercício do Poder Sobre. Que é um ser esnobe, insensível, preconceituoso e mesquinho. E a raiva se instala. Em ambos os lados do muro. Incentivados pelo Poder Sobre que deseja a separação para manter o poder. E aceito por cada um dos habitantes de cada lado do muro, porque faz sentido manter a diferenciação para manter a própria identidade.
A vereadora Marielle, para mim, foi assassinada porque assim como muitos, lutou para arejar esses muros. Para mostrar que nada é preto no branco. Que precisamos ajudar a criar novos limites, que precisamos integrar e saber que há bandido e mocinho em cada lado do muro. Morreu porque teve coragem de denunciar, gritar, chamar atenção para a quase guerra civil que estamos vivendo.
Como disse no início, minha intenção é fazer você pensar e refletir sobre que tipo de agente você está sendo neste momento social. Você está colocando mais cimento no muro dos velhos valores, do Poder Sobre, ou você está ajudando, no teu microcosmo, a abrir buracos e arejar? Uma coisa tenho certeza: um dos dois você está fazendo.
PS. quer saber mais sobre o Poder Sobre, convido a ler os post do Movimento Humano, Poder Isonômico.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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