Logo no início do avanço da Covid-19 em São Paulo, dispensamos nosso braço direito e funcionária do nosso lar para evitar expô-la e nos expor desnecessariamente. Isso fez com que iniciássemos uma rotina – ou pelo menos começássemos a criá-la – de organização e limpeza para evitar acúmulos e sujeiras. Ao mesmo tempo, decidi que iria organizar armários e arquivos. Fazer uma bela limpeza, jogar fora papéis e objetos que não tivessem mais valor. Afinal, teria mais tempo livre. Ledo engano. Estou trabalhando mais do que antes e meus dias andam bem cheios e cansativos – o que me fez pensar em minha própria atitude perante o meu lar.
Notei que no início, sem nenhuma necessidade, puxei para mim todas as tarefas da casa e precisei administrá-las com as do meu trabalho que continuavam a todo vapor. Nesse momento, pensei em como nós, mulheres, pelo menos da minha geração, carregamos o sentido de responsabilidade do andamento e cuidado do lar uase como uma tarefa individual. O que é totalmente compreensível devido à educação que tivemos. Felizmente, meu marido, que começou o isolamento alguns dias depois que eu, começou a demandar tarefas para si, tanto por me ver trabalhando bastante como também, acredito, para se ocupar. Em várias ocasiões ele me via agindo sem pedir e perguntava: “por que você não me pediu para fazer isso se estou aqui?”. Pois está aí uma boa pergunta.
Conversei com diversas amigas e percebi que, para a maioria, a postura assumida era similar. Por conta disso se sentiam sobrecarregadas e exaustas. Várias delas ainda tinham um desafio a mais: tinham crianças em casa. Notei que há várias questões envolvidas com a atitude feminina de assumir a responsabilidade das tarefas do lar e neste texto vou me deter na questão dos filhos.
Por algum motivo, fomos construindo a ideia que nos guia como sociedade de que as crianças não devem fazer qualquer atividade doméstica, a não ser estudar e brincar. Dessa forma, quando solicitamos algo, já pensamos no mínimo possível de tarefas destinadas a elas. Para quem age assim vai meu questionamento: a partir de quais pressupostos criamos o pensamento latino de que as crianças deveriam ser “poupadas” de trabalhar em casa? O que há por trás desse nosso comportamento? Será que construímos a ideia de que bons pais são aqueles que poupam o esforço das crianças? Ou, talvez, que nossos filhos, ao não realizar tarefas domésticas – que costumam ser consideradas tarefas menores, ou seja, para pessoas “menores” –, nos garantem uma posição no status social da classe média ou alta? Ou, ainda, que ao fazer isso estamos protegendo nossas crianças e adolescentes do lado chato e ruim que o cotidiano da vida tem? Por que e para quê?
Durante anos fiz pesquisas para O Boticário e diversas vezes tive a oportunidade de entrevistar seus franqueados. Lembro que me chamava a atenção positivamente o fato de que muitos deles, especialmente os que se converteram em grandes grupos empresariais, tinham começado com pouco capital. Por conta do sonho de crescer, toda a família foi envolvida nas tarefas da loja ou domésticas, permitindo assim que os pais ficassem nas lojas. Para todos era uma questão de orgulho lembrar do difícil começo, assim como ter visto seus filhos trabalhando desde cedo. O trabalho, o labor, era seu maior capital familiar.
Lembro que, quando fazia outros projetos e entrevistava profissionais que trabalhavam em empresas, a postura costumava ser distinta. Era quase um orgulho dizer que os filhos estudavam e estavam cheios de atividades extracurriculares, e que eles, os pais, trabalhavam arduamente – quase como um sacrifício a ser louvado – para oferecer essa vida aos filhos.
Difícil afirmar que haja uma divisão de valores entre os pequenos e médios empreendedores e os profissionais liberais, colaboradores de empresas; embora a lógica possa sugerir isso. Creio que podemos levantar a hipótese de que, para o pequeno e médio empreendedor, o trabalho sem limitação de horários e dias – necessário para iniciar qualquer negócio – é um capital. Ou seja, o trabalho é um capital importante com que se conta, assim como o trabalho familiar.
Independentemente dessa hipótese, o fato é que tratamos as crianças e adolescentes – especialmente da classe média baixa (nesse caso como aspiracional de posição social) até a alta – como seres que devem ser poupados dos trabalhos menores (dos pesados, obviamente, concordo). A vida, que exige sacrifícios para quem deseja vivê-la, acaba sendo filtrada, criando, como estamos vendo, uma geração despreparada para lidar com ela.
Quem sabe, nestes tempos de reset geral dos sistemas que criamos alicerçados em valores e crenças antigos, possamos reavaliar – já que temos tempo para isso – quais valores estamos oferecendo aos nossos filhos em relação ao trabalho. Qual é a visão de mundo que damos sobre esse aspecto tão importante nas nossas vida, já que é ele que nos ajuda a construir quem somos?
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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