Hoje quando vejo pessoas chamando a atenção de forma ostensiva e grosseira num ambiente público só pelo prazer de provocar e irritar, ao invés de me incomodar, me sensibilizo. Penso na dor que causamos, como sociedade, para levar a essa atitude. A mudança de mindset se deu quando compreendi melhor o que é ser um outsider. Ou melhor, o que sente um outsider.
Compreendi que, muitas vezes, o que lhe faz transgredir, é uma forma de se sentir vivo, numa situação social plena de injustiça. Compreendi que a transgressão agressiva, muitas vezes é a raiva provocada por uma dor profunda. Devo deixar claro aqui que compreender não significa concordar.
Obviamente que há pessoas más. Obviamente que há doentes e exceções em tudo que irei escrever. Menos óbvio é compreender que quem é considerado “fora”, quem está para além das fronteiras do limite social – o outsider – pode estar lá por consequências anteriores a ele, vivendo toda a pressão de ser considerado o “errado” da história. E é neste sentido que utilizo aqui o termo Outsider. Aquele que se encontra além dos limites que consideramos a sociedade ou grupo social “certo”.
De alguma maneira, para uma sociedade que se estruturou em camadas sociais e hierárquicas, que estabeleceu regras claras que definem a posição e espaço de cada grupo; que julga e valida o que é bom e o que não é; somos todos outsiders em algum ponto de conexão dessas fronteiras. Acredito que todos que estão lendo este texto já se sentiram, pelo menos uma vez na vida, excluídos e julgados como errados.
Qual foi a sensação? Qual foi o sentimento? Já pensou o que deve significar para alguém, quando isso não é um fato isolado e sim seu estado constante de vida? Quando é repetido insistentemente manhã, tarde e noite? Quando a cada passo, a mensagem de “errado”, “inadequado” e, pior, de não aceito, é passada?
Eu já vivi diversos episódios. Mulher, estrangeira, divorciada, numa sociedade com clara tendência ao provincianismo, na década de 90, dá para imaginar? Felizmente, nunca foram casos graves, embora acredito que também ali, haja perigo. Você nem sempre percebe a exclusão e o desrespeito. Só os sente. A dor vai se instalando aos poucos. Foram anos para entender que, apesar de minha atitude de ir em frente, resquícios tinham ficado na minha autoestima. Compreendi como todas essas experiências tinham moldado a forma de me comportar.
Nos últimos meses, durante a primeira onda do Projeto Uno, toquei na questão de ser outsider com diversos entrevistados: negros, gays, deficientes físicos, moradores de comunidades urbanas periféricas. O sentimento é único: dor. A sociedade chega a ser cruel. Precisa de muita força para superar sem cair na criminalidade ou no desejo de revanche. No desejo de transgredir e colocar para fora toda o sentimento de dor.
Uma das formas para lidar com essa realidade é se autoconvencer que as atitudes de exclusão e julgamento, mesmo de forma sutis, são “normais”. Essa forma vai criando um efeito colateral. Com o tempo consideram o “normal” como “natural” e, pode chegar ao “bom”. Quando isso acontece, estão aceitando que são os errados da sociedade. E como tais, precisam agir no mundo. É aí, que a transgressão agressiva pode se manifestar.
Um dos meus entrevistados, negro, classe média alta, gerente sênior numa grande empresa, foi me falando de situações, que ainda hoje, costuma viver. Cenas que, na medida que ia me contatando, ia me vendo como parte dos atores nesse drama social. Contava como era comum, mesmo vestindo-se bem, estar andando num shopping ou numa rua, e ao ficar, sem querer, de frente com alguém branco, ver nos olhos dessa pessoa, surpresa e medo. Como instintivamente, mulheres seguravam suas bolsas. São segundos, mas o suficiente para lhe lembrar, toda vez, que ele não é o “certo” nessa estrutura social.
Fiquei comovida. Comovida porque eu mesma tenho essas reações. Conversamos sobre isso. Disse claramente, como, mesmo tentando me controlar, mesmo me esforçando, tinha essas mesmas reações. Disse isso sentida e envergonhada. Ele, docemente, me disse que sim, que entendia. Sabia que fomos criados aprendendo a ter medo de negro. Temos números de criminalidade que apoiam esse raciocínio. Numa sociedade ex-escravagista – lembrando que, vergonhosamente, fomos um dos últimos países a abolir a escravidão – as consequências se apresentam na desigualdade social, cultural e educacional. É lógico, que a criminalidade, uma forma de sobrevida para os outsiders, esteja presente nas classes menos favorecidas. Embora, hoje vemos que a criminalidade – de colarinho branco, por exemplo – não se limita a ela.
Considero importante entender que somos todos presos a mesma situação. Quem julga e quem é julgado fazem parte do mesmo sistema. Só existe um lado, se existe o outro. Não existe ‘fora’ nem ‘dentro’. Na realidade, podemos pensar, que o conceito outsider só diz sobre quem estamos falando, a partir do ponto que estamos.
Esse meu entrevistado tinha tido uma infância feliz. Tinha sido amado. O que compensava a dureza fora de casa. Talvez por isso, ele tinha seguido um caminho de ascensão social dentro da legitimidade. Fingindo não se dar conta de toda a injustiça e preconceito. Engolindo e continuando. Mas, sabemos que nem todos conseguem. Nem todos foram amados e cuidados. Sabemos que muitos são outsiders nas suas próprias famílias.
Toda essa dor, toda essa falta de amor, pode levar à transgressão agressiva. É tão triste e lamentável, como real. Novamente, não concordo que se use da transgressão agressiva. Muito menos apoio. Ao mesmo tempo, penso que olhar para além das camadas superficiais do comportamento em si podem ajudar a sermos mais empáticos com aqueles que, aprendemos a deixar de fora de nossas fronteiras.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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