Perguntar como vão os sonhos ao brasileiro, mesmo em época de crise, ajuda a compreender como veem o futuro e quais valores os estão guiando. Entra crise, sai crise, o que continua imbatível é o desejo por liberdade. Em época de crise, o sonho pela liberdade, vira uma queixa constante pela percepção da falta. Em época de bonança, parece ser o sonho que guia o futuro.
Liberdade para não viver com tantas obrigatoriedades. Liberdade para viver mais leve e solto. Liberdade para tirar o peso das contas e dos compromissos financeiros. Liberdade para se viver e fazer o que se quiser. Liberdade. Todos parecem sonhar com ela. Nem todos estão dispostos a mudar por ela.
Quando comecei minha carreira como pesquisadora, ao perguntar sobre o sonho de liberdade, a maioria acreditava que para obtê-la, era necessário ser rico. Era final da década de 80, e os mais jovens nem devem saber que naquele período o poder de consumo estava concentrado na classe A – e, é importante dizer, concentrado na cidade de São Paulo. Não lembro os percentuais, mas antes do Plano Real – que foi o início da distribuição de renda no país, distribuição que continuo e se acentuou até pouco tempo atrás – a concentração de renda era vergonhosa.
Para quem não nasceu rico, não acreditasse na sorte das loterias ou não tivesse talento para ser artista ou jogador de futebol, o sucesso profissional era visto como o meio para alcançar a riqueza. Estudar e trabalhar arduamente eram a fórmula da maioria. Especialmente da classe média. Seja alta, média ou baixa. Saber crescer nas corporações aprendendo o jogo político, era um refinamento para se chegar lá. O tempo passou e muitos descobriram que mesmo batalhando muito, a riqueza parecia estar cada vez mais longe.
Valores novos iam crescendo no coração das pessoas. Filhos criados com pais ausentes pelo excesso de trabalho ou dificuldade em demostrar carinho, geraram adultos com vontade de viver carinhosamente, mais perto dos que amam. Acesso a mais informação mostrou que nem todo rico era feliz. Suicídios, burnouts, dependências químicas sérias – as legais e as ilegais –, começavam a desmitificar o reino dos ricos, idealizado por filmes e propagandas.
O tempo na vida das pessoas começou a ter outro significado. O viver agora, ganhou força. Ao mesmo tempo que parecíamos aprisionados pelo relógio, começávamos a entender que viver nos dando pequenos prazeres compensava o atraso em direção ao futuro endinheirado. Futuro que talvez nunca chegasse.
Detalhes sobre o mundo corporativo que mostravam volume de horas de trabalho dedicado, viagens constantes, reuniões intermináveis, começaram a tirar o verniz dourado da vida de carros blindados e jatinhos particulares. Além de ser um reino para poucos, aos olhos das novas gerações, esses altos executivos pareciam mais presos do que livres. E creio que aqui é um dos pontos vitais para a transformação: a liberdade.
Como resposta a esse ‘velho’ mundo surgiram diversos modelos que trouxeram ar fresco, reformulando os benefícios de liberdade: ocupação das áreas públicas da cidade como parques e praças ao invés de trancar filhos dentro de muros. Alternativas de locomoção em contraposição ao carro. Andar ao invés de ficar sentado. Ficar em casa ao invés de ir ao escritório. Sair das bolhas em que nos sentimos localizados para nos deslocalizar e inspirar. Quem circula é visto hoje como livre. Quem transita entre bolhas sociais e culturais também. Quem consegue deixar de lado os ternos e gravatas, tailleurs e saltos altos e assume feliz jeans, sapatilhas ou tênis virou ícone do que é ser livre. As roupas podem ser caras, podem ser baratas. O ponto é poder vesti-los quando se quiser.
Nos dias de hoje continuamos sendo guiados pelo desejo de liberdade. Só que ela passa cada vez mais pela capacidade de usar nosso tempo da forma como quisermos. De viver as experiências que consideramos importante. Mesmo que isso signifique abrir mão de coisas. Estamos aprendendo a fazer trade off.
Importante dizer, que sempre haverá aqueles que o ter – objetos, casa, carros e outras tantas coisas – é fundamentalmente importante. Sem problemas. Duas coisas são claras para mim ao analisar os Movimentos Humanos da sociedade brasileira: a primeira, é que a variedade de formas de vida se multiplicou, e, pertencendo, pelo menos, à classe socioeconômica média baixa no Brasil, cada um pode escolher, dentro dos limites socias impostos, o que melhor lhe cabe. Infelizmente abaixo desse corte de classe socioeconômica, quando pensamos nas classes baixas, a situação econômica restringe brutalmente, a liberdade de escolha.
Segundo, o espírito da classe média mudou. Quando comecei minha carreira a classe média era vista como a mais conservadora e a que tentava manter de forma quase rigorosa a forma do status quo vigente, evitando inovações. Com a distribuição de renda, a classe média ampliou-se agregando as classes abaixo dela. Esse processo a arejou e lhe trouxe outros modelos de vida. Outros valores e crenças. Hoje, dentro dos novos significados de liberdade, tudo me leva a pensar que é a classe que mais liberdade tem experimentado. Talvez por ter menos compromisso como o ter.
O compromisso com o ter se faz fundamental na base e no topo da pirâmide social. A base, a mais pobre, está tão necessitada que o ter é essencial para viver. O topo da pirâmide, os ricos, parecem cada vez mais necessitados em ter. Talvez, porque não sabem viver de outra forma. Os dois, base e topo, me parecem ser os segmentos que mais vivem em bolhas. Arejando-se pouco. Isso me leva a supor que talvez, seja a classe média, que hoje, mesmo sem notar, tenha mais disponibilidade para viver a tão sonhada liberdade.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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