Outro dia, conversando com uma amiga, surgiu a pergunta título deste texto: será que temos mais de uma alma gêmea? Ela tinha amado profundamente uma pessoa, ficaram juntos durante anos muito importantes para ambos. Foram felizes até o momento em que os ciclos da vida os afastaram.
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No amadurecimento, os objetivos e a perspectiva sobre o futuro que ambos tinham foram se diferenciando até se tornarem inconciliáveis. Cada um foi tomando interesses e rumos diferentes. Reagindo à vida de forma diferente. Foi nesse momento que, após muita dor, se separaram.
Quem pede a separação costuma ficar mais aliviado. Mesmo assim, nem por isso a dor é menos profunda. Especialmente quando se sabe que se amou muito. Quem recebe o pedido, embora a morte da relação já estivesse mais do que anunciada, leva o impacto da decisão, de se saber recusado, de se sentir rejeitado. Ou também aliviado. Às vezes, a pessoa não tem coragem e nem quer carregar o ônus familiar da separação e faz a vida se tornar bem dura para o casal. Tudo para que o outro tome a decisão mais difícil. Não importa quem decide, normalmente não se está pronto para lidar com o novo, para se jogar em direção ao futuro incerto.
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Quando você é mais maduro e sabe que o que te uniu a alguém foi um amor profundo, é difícil compreender o fim. Há um sentimento de incompetência. De fracasso. O fim de um grande amor é, sim, um fracasso. Como duas pessoas que realmente se amam não conseguem lidar com as diferenças? Qual foi a falha? O que aconteceu com nossa maturidade e capacidade de administrar a vida? Para compreender melhor esses aspectos e responder à pergunta título deste texto, considero importante entender os ciclos de vida.
Teoricamente, na visão da psicologia, passamos por alguns ciclos de vida que se regem aproximadamente pelas faixas etárias. Fica fácil compreender que, de acordo com, para onde colocamos atenção dentro de cada ciclo de nossa vida, nossos interesses mudam. Nossa visão de mundo se altera – e deveria se alterar! Faz parte do amadurecimento. Assim, quando estamos no colégio, vemos o mundo a partir de um ponto de ampla possibilidade: toda uma vida para ser construída. Isso pode nos amedrontar ou nos encorajar. Depois, quando começamos a construir nossa vida financeira, vamos mudando de posição perante a vida.
Podemos ficar mais ambiciosos, podemos ficar menos. Podemos desistir, podemos insistir. O trabalho numa sociedade capitalista pauta nosso ritmo, valores e crenças em relação à vida. É quando estamos nos estabelecendo como seres produtivos que costumamos nos casar, ter filhos.
Nosso compromisso muda de foco.
A maioria de nós assume o compromisso de criar e sustentar o ninho: seja ele físico – nosso lar –, seja ele familiar, com a criação dos filhos.
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Após as coisas estarem mais bem estabelecidas, já na faixa de 45 anos aproximadamente, vem outra mudança de ciclo que considero importante e que leva muitos grandes amores a morrer: olhamos para o futuro da maturidade e a terceira idade como algo relativamente próximo e pensamos o que queremos dele. Como queremos viver? O que é realmente relevante para nós? O que queremos levar para esse futuro?
Os filhos já estão mais bem administrados. O lar costuma estar mais bem resolvido, mesmo que de forma modesta. No fundo, já sabemos o que somos capazes de conseguir. A forma de trabalhar já está equacionada – a menos que venha o choque do desemprego, que desestabiliza tudo novamente.
O fato é que valores pessoais – que regem nossa visão de mundo e nosso comportamento – vão evoluindo com o passar dos ciclos da vida. A mudança em relação aos nossos valores de criança é natural e correta sob o ponto de vista de desenvolvimento humano. Alguns dos valores que herdamos dos nossos pais e microcosmo familiar podem continuar, outros morrerão e novos costumam entrar.
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Nosso ser interno, à medida que amadurece, vai apontando para novas perspectivas de vida. Seja pela estabilidade financeira ou pela instabilidade, é hora de olhar para dentro e ver o que queremos da vida.
É hora de olhar para fora e ver se quem está ao nosso lado desenvolveu os mesmos valores e as mesmas perspectivas de futuro.
É nesse momento que o choque de realidade acontece. Vejo muitos casais se separando nesse ciclo de vida. Isso significa que não houve amor? Isso significa que tínhamos nos enganado em relação ao nosso par ser a nossa alma gêmea?
Sinceramente, creio que não. A gente ama e vive esse amor de acordo com a nossa maturidade. É claro que há pessoas que acreditam amar profundamente somente quando estão apaixonadas. Neste texto não estou me referindo a elas. Me refiro a quem conscientemente sabe que ama e que a pessoa a seu lado é (ou era) a sua melhor companheira, a pessoa que o completava ou, se já se sabia completo, a pessoa com quem se queria passar o resto da vida. Aquela que poderíamos chamar de alma gêmea.
Assim como cada um de nós, o outro também evolui.
Reage às situações da vida, vai escolhendo valores. Vai sintonizando com um estilo de vida e perspectiva de futuro. Com base nessa escolha mais profunda de quem eu estou me tornando, cada um dos seres que compõem o casal, faz suas escolhas e pode, sem querer, se afastar do grande amor da vida. Quando isso acontece, o vazio é profundo. Curar a dor do fracasso da relação leva tempo. Mas, se bem curado, vamos dando espaço para aquele ser dentro de nós se manifestar mais e mais. Vamos, sim, mudando – às vezes “radicalmente”–, como ouço dizer sobre alguém que mudou sua vida.
É nesse encontro com nosso novo ser que, se estamos sós, encontramos uma nova alma gêmea. Alguém de acordo com os nossos valores, agora assumidos e escolhidos por nós. De acordo com nossa madura perspectiva de vida. Alguém para compartilhar esse novo universo que se abre à frente. Gosto do sentido de alma gêmea como alguém próximo ou parecido a nós. Não gosto do sentido de alguém que nos completa, porque considero o estado de maturidade como o de plenitude individual. Somos completos individualmente.
Essa nova alma gêmea, se ouvirmos o nosso coração, será alguém que nos entenderá porque compartilha nossa visão de mundo. Alguém que vai nos acolher na nossa integridade imperfeita. Alguém que não teremos nenhum problema em suportar, porque não será um peso. Por não ser distante de nós. Porque o mundo que essa pessoa vê e vive estará de acordo com nossos valores. Ter uma relação assim é uma benção. De certa forma, algo que todos temos direito, mas que nem sempre aceitamos ou temos a coragem de usufruir.
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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