Fui criada em uma classe média, bem média. Meus pais eram pobres nas suas infâncias e foram crescendo economicamente até nos dar uma vida com conforto, alguns luxos e periódicas instabilidades financeiras. Talvez por estarmos próximos do limite crítico entre classes econômicas distintas – média baixa e alta, aquele espaço médio em que você não é uma coisa nem outra –, cresci como quase todos nessa posição: aspirando a pertencer à classe econômica logo acima da minha e buscando, o tempo inteiro, não parecer pertencer àquela da qual meus pais tinham saído.
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O pensamento comum ao ambiente social onde me criei era considerar as pessoas de baixa renda – especialmente aquelas que moram na periferia – como pessoas com comportamentos pouco civilizados; avaliação feita a partir da ideia de que civilizado se referia ao comportamento das classes elitizadas. À medida que se descia na hierarquia social, maiores eram as chances de se distanciar do comportamento admirado.
Quem vive “dentro” da cidade e não na periferia costuma pensar que os moradores de “fora” são os rompedores dos acordos sociais da boa convivência e os que possuem comportamentos sem muito raciocínio lógico, tornando-os, até certo ponto, agressivos e ameaçadores. Como se os moradores da periferia fizessem parte de um território apêndice do nosso, sem nenhuma capacidade de pertencimento ao nosso ambiente “civilizado”. Nesse contexto o que é periférico está fora. Há muitos aspectos desse pensamento que podemos analisar; neste texto, vou me ater somente a alguns.
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Penso que a intenção de tornar pior e menosprezar o comportamento dos moradores da periferia se motiva, em parte, pelo desejo de se posicionar como superior: superiormente civilizado, superiormente elitizado, superiormente educado e por aí vai. Quanto mais medo temos do limite que nos une à classe imediatamente inferior, quanto mais queremos nos classificar e remarcar nosso espaço territorial do status almejado, mais buscamos nos diferenciar.
Ao querermos nos diferenciar, inevitavelmente segregamos.
Com o tempo, a linha de pensamento que torna os moradores da periferia menos civilizados – e, por que não, menos humanos – passa a ser uma verdade que define a nossa visão de mundo, o ponto de os considerarmos – já que são menos humanos – pessoas com menos valor. Então, por que não essas pessoas serem cobaias humanas das vacinas contra a covid-19? O comentário da Xuxa, pessoa de quem gosto e que admiro, só me faz confirmar que esse pensamento segregador permeia todos nós em maior ou menor grau.
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O mesmo ocorre com os índices da covid-19 em São Paulo, capital. Vi um mapa que mostra a Zona Leste e a Zona Norte com maiores taxas de mortes. Pensamos que as pessoas dessas regiões da cidade estão morrendo mais de covid-19 por inconsequências e irresponsabilidade – “só tem pancadão por lá”. Poucos se atêm ao fato de que a maioria que mora na periferia é gente trabalhadora a quem não foi dado direito de ficar em casa.
Quem vocês acham que fazem as comidas deliciosas que pedimos pelo delivery? Quem entrega todo nosso consumo feito, de forma confortável e protegida, a partir do nosso lar? Quem vocês acham que trabalha na cadeia completa da construção civil, agora hiper aquecida porque queremos mais conforto?
Um outro aspecto cruel da necessidade de segregação das classes economicamente inferiores é que não costumamos ter o mesmo julgamento quando se trata de classes econômicas médias altas ou altas. Classes que continuam congregando em casa, celebrando aniversários, enchendo os hotéis e pousadas das praias, fazendo festas clandestinas em condomínios de luxo. O que pensamos delas? No máximo, que são esnobes e irresponsáveis porque têm dinheiro. Mas considerar esses indivíduos como seres humanos sem capacidade de convivência social – no sentido da responsabilidade coletiva – nem passa pela nossa cabeça. Muito menos que eles sejam menos humanos a ponto de pensarmos que podem ser cobaias de testes de vacinas.
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Para mudar minha visão de mundo segregadora, primeiro tomei consciência da injustiça social que ela gera. Da dor que provoca. Isso fez com que eu me abrisse para questionar as narrativas com as quais fui criada nos ambientes de que participava – escola, vizinhança, família. O segundo passo foi estar atenta à forma como pensava, e o terceiro foi estudar – ler, assistir e ouvir – outras narrativas que me abrissem para uma realidade que considero mais justa, mais empática, mais correta e, sem dúvida nenhuma, mais real. Como tenho dito constantemente, estou no processo de desconstrução. Vamos nessa?
Nany Bilate é pensadora intuitiva e pesquisadora. Seus estudos e textos são focados na transição de valores e crenças da nossa sociedade. E sua interferência nas identidades feminina e masculina contemporâneas.
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